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Conto:Mulher De Mim

por Jorge Soares, em 21.11.09

Mulher de mim, Mia Couto

 

Naquela noite, as horas me percorriam, insones ponteiros. Eu queria só me esquecer-me. Assim deitado, não sofria outra carência que não fosse, talvez, a morte. Não aquela, arrebatante e definitiva. A outra: a morte-estação, inverno subvertido por guerrilheiras florações.

O calor de Dezembro me fazia desaparecer, atento só à extinção do gelo no copo. A pedrinha de gelo me semelhava, ambos nós transitórios, convertendo-nos na prévia matéria de que nos havíamos formado.

Nesse enquanto, ela entrou. Era uma mulher de olhos lisos que humedeciam o quarto. Vagueou por ali, parecia não acreditar em sua própria presença. Seus dedos passeavam pelos móveis, em distraído afecto. Quem sabe ela sonambulasse, aquela realidade lhe fosse muito fictícia? Eu queria avisar-lhe que estava enganada, que aquele não era seu competente endereço. Mas o silêncio me alertou que ali estava a decorrer um destino, o cruzar das fatais providências. Então, ela se sentou na minha cama, ajeitou seu delicado lugar. Sem me olhar, começou de chorar.

Nem me guiei: já as minhas carícias se desenrolavam em seu colo. Ela se deitou, imitando a terra em estado de gestação. Seu corpo se me entreabria. Mais fôssemos, no seguinte, e chegaríamos a vias do facto. Mas, nos avanços, me tremurei. Vozes ocultas me seguravam: não, eu não podia ceder.

Mas a estranha me atentava, descendo do seu decote. Seu peito me espreitava, subornando meus intentos. As lendas antigas me avisavam: virá uma que acenderá a lua. Se resistires, merecerás o nome da gente guerreira, o povo de quem descendes. Nem eu bem decifrava a lendável mensagem. Certo era que ali, naquele quarto, se executava a prova de mim, o quanto valiam meus mandos.

Porém. Por artes da intrusa, eu desaparecia, intermitente, da existência. Me irrealizava. E quando me apelava, rumo à razão, nem sequer eu chegava a meu cérebro, o austero juiz. Por causa a voz dessa mulher: lembrava o murmurinho das fontes, a sedução do regresso a dantes quando não havia antes. Ela me queria meninar, conduzir-me às primitivas dormências. Avemente, se ninhou em meu peito. Procurava em mim espelho para o suave luar? Deixei-me, sem estatura. Aqueles círculos negros, seus olhos redondos de não terem fim, me surgiam como dois soluços, fossem partes de mim, saudosos, que me espreitassem.

Ela contou sua história, seus episódios. Variantes de verdade, me davam o doce gosto do fingimento.

Me apetecia o infinito tal igual as crianças que sempre perguntam: e depois?

Mas a estranha notou em si uma ausência. Devia ir. Prometeu que regressava logo. Já, o mais tardar. No umbral da porta, soprou um beijo a modos de antiquíssima esposa. Saiu, penumbrou-se.

Não sei o quanto demorou. Talvez umas tantas noites. Ou escassos instantes. Nem sei. Porque adormeci, ansioso por me suprimir. Doeu-me acordar, malvorei-me. Nesse custo, entendi: acordar não é a simples passagem do sono para a vigília. É mais, um lentíssimo envelhecimento, cada despertar somando o cansaço da inteira humanidade. E concluí: a vida, ela toda, é um extenso nascimento.

Então, me recordei do antecedente sonho, sabendo da verdade que só ela em delírio se revela. Afinal: os mortos, os viventes e os seres que ainda esperam por nascer formam uma única tela. A fronteira entre seus territórios se resume frágil, movente. Nos sonhos todos nos encontramos num mesmo recinto, ali onde o tempo se despromove à omniausência. Nossos sonhos são senão visitas a essas vidas outras, passadas e futuras, conversa com nascituros e falecidos, na irrazoável língua que nos é comum.

Os vindouros, esses que aguardam por corpo, são quem mais devíamos temer. Porque deles sabemos o quase nada. Dos mortos ainda vamos recebendo recados, afeiçoamo-nos a suas familiares sombras. Mas o que não suspeitamos é quando a nossa alma se compõe desses outros, transvisíveis. Esses, os pré-nascidos, não nos perdoam o habitarmos o luminoso lado da existência. Eles congeminam as mais perversas expectâncias, seus poderes nos puxam para baixo. Pretendem que regressemos, teimando-nos em sua companhia.

O que invejam eles, os vindouros? Será o não terem nome, não respirarem a límpida luz? Ou, como eu, sentirão receio que alguém percorra as suas vidas antes deles? Duvidarão que essa antecipação os torne menos possíveis, como se gastos por um prévio original?

Pois eu, no instante, invejava as ambas categorias: os mortos, por se aparentarem à perfeição dos desertos; os nascituros, por disporem do inteiro futuro.

Sentado sobre lençóis engelhados, olhava a recente luz do dia, suas trôpegas poeirinhas luminosas. Pela janela me chegavam os sons do trânsito, a cidade satisfeita com suas rápidas desordens. Me veio a saudade, não das sobrenaturais crenças mas das outras, infranaturais, nossas calcaladas convicções animais. Não era a humana nostalgia que me assaltava. Porque a saudade dos homens é toda do presente, nasce do amor não cumprir, na hora, os seus deveres. Minha tristeza era outra: vinha de ter tocado aquela mulher. Me sentia com a despesa do arrependimento. Que infracção eu cometera se o desejo despontara apenas na flor dos dedos?

Me levantei, procurando algum descuido. Mas aquele quarto me desprotegia, me orfanava. Porque, no visto das coisas, a gente vai transitando do útero para a casa, cada casa não sendo senão outra edição do ventre materno. Como um pássaro que sempre e sempre tecesse o ninho, o seu, para suas futuras nascenças e não das crias. Aquela mulher me lembrava que aquela casa, afinal, não me dava nenhum acolhimento.

Espreitei pela janela, vi a mulher chegando. Veio-me ao pensamento a suspeita, certeira, que ela não era mais que um desses seres vindouros, enviado para me retirar do reino dos viventes. Sua tentação era essa: levar-me ao exílio do mundo, emigrar-me para outra existência. Em troca eu lhe daria a carícia, em matéria de corpo, isso que apenas os viventes logram possuir.

Precisava pensar rápido: ela gozava a vantagem de não precisar de consultar a razão. Eu devia encontrar, súbito, a saída do momento. Me chegou por via de intuição: em qualquer lugar deveriam de existir os assassinos dos mortos, justiceiros dos pré-nascidos. O que eu precisava era convocar um desses matadores para suprimir não a vida mas a suspeição daquela mulher. Sendo a pergunta: onde encontraria um desses matadores, como instigar a sua repentina aparição? Porque tudo urgia, ela vinha chegando, seus passos já superavam as escadas.

Que fazer, se nenhum tempo me restava? Matá-la eu, de corpo e sangue? Serviria só se ambos estivéssemos em sonho, coisa que eu não parecia. Ela era uma enviada, com encomendado serviço de me buscar, levar-me para onde tudo é ainda futurível.

Ela entrou, eu estremeci. A intrusa surgia agora com maior beleza, cada vez mais deusa, requerendo a total devoção de um crente. Me adveio um recurso, tábua que a onda traz. Lhe disse:

- Te adivinho ainda pequena, ontem de antes. Recordas-te?

Ela se afligiu, atingida. Por momentos, lhe faltou o peito, ela toda se inspirou. Os nascituros estão isentos de memória, seu primeiro choro está ainda por despontar. O medo dela me dava argúcia, eu me ajudava enquanto a via chegar-se ao espelho. A estranha se contemplou despindo, sorrindo na pétala de cada gesto.

Só finges, nem te vês, lhe disse, mais dono de mim. Ela desistiu de si mesma, veio até ao leito, me tocou. Chamou por meu nome, docemente. Passou o dedo por meus lábios.

- Tu não entendes.

Sorria com mágoa. Minhas frágeis habilidades lhe haviam feito ofensa. Contudo, me perdoava. O sereno sorriso lhe regressara.

- Tranquila-te, eu não te venho buscar.

O que vinha fazer, caso então? Porque tanto mais ela se senhorava mais eu me inquietava. A enviada prosseguiu:

- Não percebes? Eu venho procurar lugar em ti.

Explicou suas razões: só ela guardava a eterna gestação das fontes. Sem eu ser ela, eu me incompletava, feito só na arrogância das metades. Nela eu encontrava não mulher que fosse minha mas a mulher de mim, essa que, em diante, me acenderia em cada lua.

- Me deixa nascer em ti.

Fechei os olhos, em vagaroso apagar de mim. E assim deitado, todo eu, escutei meus passos que se afastavam. Não seguiam em solitária marcha mas junto de outros de feminino deslize, fossem horas que, nessa noite, me percorreram como insones ponteiros.

 

 

Mia Couto, Cada Homem é uma Raça

Retirado de Contos de Aula

publicado às 20:51


Ó pra mim!

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