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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Fotografia minha, retirada de Momentos e olhares
Continuação do Conto Um rasto do teu sangue na neve de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
- Afinal, faltam só quatro dias - concluiu. - Até lá, vá ao Louvre. Vale a pena.
Ao sair, Billy Sánchez encontrou-se, sem saber o que fazer, na Place de la Concorde. Viu a torre Eiffel por cima dos telhados e pareceu-lhe tão próxima que tentou chegar até ela caminhando pelo cais. Mas de repente percebeu que estava mais longe do que lhe parecia, e que além disso mudava de lugar conforme a procurava. Começou então a pensar em Nena Daconte sentado num banco na margem do Sena. Viu passar os rebocadores por baixo das pontes, e não lhe pareceram barcos e sim casas errantes com telhados vermelhos e janelas com vasos de flores nos parapeitos, e arames com roupa secando no convés. Contemplou durante um longo tempo um pescador imóvel, com a vara imóvel e a linha imóvel na corrente, e cansou-se de esperar que alguma coisa se movesse, até que começou a escurecer, e decidiu pegar um táxi para voltar ao hotel. Só então percebeu que ignorava o nome e o endereço, e que não tinha a menor idéia de em que lado de Paris estava o hospital. Atordoado pelo pânico, entrou no primeiro café que encontrou, pediu um conhaque e tentou pôr seus pensamentos em ordem. Enquanto pensava, se viu repetido muitas vezes e de ângulos diferentes nos numerosos espelhos das paredes, e sentiu-se assustado e solitário, e pela primeira vez desde seu nascimento pensou na realidade da morte. Mas com o segundo copo sentiu-se melhor, e teve a idéia providencial de voltar à embaixada. Buscou o cartão no bolso para recordar o nome da rua, e descobriu que no verso estavam impressos o nome e o endereço do hotel. Ficou tão mal impressionado com aquela experiência que durante o fim de semana não tornou a sair do quarto a não ser para comer e para mudar o carro de calçada conforme correspondesse o dia.
Durante três dias caiu sem pausa a mesma garoa fina e suja da manhã em que chegaram. Billy Sánchez, que nunca havia lido um livro inteiro, quis um para não se aborrecer esticado na cama, mas os únicos que encontrou nas maletas de sua mulher eram em idiomas diferentes ao castelhano. Assim continuou esperando a terça-feira, contemplando os pavões repetidos no papel das paredes e sem deixar de pensar um só instante em Nena Daconte.
Na segunda-feira arrumou um pouco o quarto, pensando no que ela diria se o encontrasse naquele estado, e só então descobriu que o casaco de visom estava manchado de sangue seco. Passou a tarde lavando-o com o sabonete que encontrou na frasqueira, até que conseguiu deixá-lo outra vez como havia sido levado para o avião em Madri.
A terça-feira amanheceu turva e gelada, mas sem a garoa, e Billy Sánchez levantou-se às seis, e esperou na porta do hospital junto com uma multidão de parentes de enfermos carregados de pacotes de presentes e ramos de flores. Entrou com o tropel, levando no braço o casaco de visom, sem perguntar nada e sem nenhuma idéia de onde podia estar Nena Daconte, mas mantido pela certeza de que haveria de encontrar o médico asiático. Passou por um pátio interior muito grande, com flores e pássaros silvestres, em cujos lados estavam os pavilhões dos doentes: as mulheres, à direita, e os homens, à esquerda. Seguindo os visitantes, entrou no pavilhão das mulheres. Viu uma longa fileira de enfermas sentadas nas camas com a camisola de trapo do hospital, iluminadas pelas luzes grandes das janelas, e até pensou que aquilo tudo era mais alegre do que se podia imaginar lá de fora. Chegou até o extremo do corredor, e depois percorreu-o de novo no sentido contrário, até convencer-se de que nenhuma das enfermas era Nena Daconte. Depois percorreu outra vez a galeria exterior, olhando pela janela os pavilhões masculinos, até que pensou estar reconhecendo o médico que procurava. Era ele, de fato. Estava com outros médicos e várias enfermeiras, examinando um enfermo.
Billy Sánchez entrou no pavilhão, afastou uma das enfermeiras do grupo e parou na frente do médico asiático, que estava inclinado sobre o enfermo. Chamou-o. O médico levantou seus olhos desolados, pensou um instante e então o reconheceu.
- Mas onde diabos o senhor se meteu? - disse.
Billy Sánchez ficou perplexo.
- No hotel - disse. - Aqui, na esquina.
Então ficou sabendo. Nena Daconte tinha sangrado até morrer às 7:10 da noite da quinta-feira, 9 de janeiro, depois de 72 horas de esforços inúteis dos especialistas mais qualificados da França. Até o último instante havia estado lúcida e serena, e deu instruções para que procurassem seu marido no hotel Plaza Athenée, onde tinham um quarto reservado, e deu os dados para que entrassem em contato com seus pais. A embaixada havia sido informada na sexta-feira por um telegrama urgente da chancelaria, quando os pais de Nena Daconte já estavam voando para Paris. O embaixador em pessoa encarregou-se dos trâmites do embalsamento e dos funerais, e permaneceu em contato com a Chefatura de Polícia de Paris para localizar Billy Sánchez. Um chamado urgente com seus dados pessoais foi transmitido desde a noite da sexta-feira até a tarde do domingo, através do rádio e da televisão, e durante essas 48 horas foi o homem mais procurado da França. Seu retrato, encontrado na bolsa de Nena Daconte, estava exposto por todos os lados. Três Bentley conversíveis do mesmo modelo haviam sido localizados, mas nenhum era o dele. Os pais de Nena Daconte haviam chegado no sábado ao meio-dia, e velaram o cadáver na capela do hospital esperando até a última hora encontrar Billy Sánchez. Também os pais dele haviam sido informados, e estiveram prontos para voar a Paris, mas no final desistiram por uma confusão de telegramas. Os funerais ocorreram no domingo às duas da tarde, a apenas duzentos metros do sórdido quarto de hotel onde Billy Sánchez agonizava de solidão pelo amor de Nena Daconte.
O funcionário que o havia recebido na embaixada me disse anos mais tarde que ele mesmo recebeu o telegrama de sua chancelaria uma hora depois de Billy Sánchez ter saído de seu escritório, e que andou procurando-o pelos bares sigilosos do Faubourg St. Honoré. Confessou-me que não tinha prestado muita atenção quando o recebeu, porque nunca teria imaginado que aquele costenho atordoado pela novidade de Paris, e com uma jaqueta de cordeiro tão mal posta, tivesse a seu favor uma origem tão ilustre.
No mesmo domingo de noite, enquanto ele suportava a vontade de chorar de raiva, os pais de Nena Daconte desistiram da busca e levaram o corpo embalsamado dentro do ataúde metálico, e quem chegou a vê-lo continuou repetindo durante muitos anos que nunca haviam visto uma mulher mais bela, viva ou morta.
Assim, quando Billy Sánchez entrou enfim no hospital, na manhã da terça-feira, já se havia consumado o enterro no triste panteão de La Manga, a muito poucos metros da casa onde eles haviam decifrado as primeiras claves da felicidade. O médico asiático que deixou Billy Sánchez a par da tragédia quis dar-lhe umas pílulas tranqüilizantes na sala do hospital, mas ele as recusou. Foi embora sem se despedir, sem nada a agradecer, pensando que a única coisa que ele necessitava com urgência era encontrar alguém para arrebentar a correntadas, para se desquitar de sua desgraça. Quando saiu do hospital, nem ao menos percebeu que estava caindo do céu uma neve sem rastros de sangue, cujos flocos ternos e nítidos pareciam pluminhas de pombas, e que nas ruas de Paris havia um ar de festa, porque era a primeira nevada grande em dez anos.
1976.
Fim
Texto completo aqui:http://conselheiroacacio.wordpress.com/2008/09/26/o-rastro-do-teu-sangue-na-neve-g-g-marquez/
Continuação do Conto Um rasto do teu sangue na neve de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
Às sete tomou outro café com leite e comeu dois ovos cozidos que ele mesmo pegou do balcão depois de 48 horas comendo a mesma coisa no mesmo lugar. Quando voltou ao hotel para se deitar encontrou seu carro sozinho numa calçada e todos os outros na calçada em frente, e tinha uma notificação de multa colocada no pára-brisa. O porteiro do Hotel Nicole teve trabalho para explicar-lhe que nos dias ímpares do mês podia-se estacionar na calçada dos números ímpares, e no dia seguinte, na calçada contrária. Tantas artimanhas racionalistas eram incompreensíveis para um Sánchez de Ávila de pura cepa, que apenas dois anos antes havia se enfiado num cinema de bairro com o automóvel oficial do prefeito, e havia causado estragos de morte diante de dois policiais impávidos. Entendeu menos ainda quando o porteiro do hotel aconselhou-o a pagar a multa mas a não mudar o carro de lugar naquela hora, porque teria de mudá-lo outra vez à meia-noite. Naquela madrugada, pela primeira vez, não pensou em Nena Daconte, mas se revirava na cama sem poder dormir, pensando em suas próprias noites de pesadelo nas cantinas de maricas do mercado público de Cartagena do Caribe.
Lembrava-se do sabor do peixe frito e do arroz de coco nas pensões do embarcadouro onde atracavam as escunas de Aruba. Lembrou-se de sua casa com as paredes cobertas de trinitárias, onde agora seriam sete da noite de ontem, e viu seu pai com um pijama de seda lendo o jornal no fresco da varanda. Lembrou-se de sua mãe, de quem nunca se sabia onde estava a nenhuma hora, sua mãe apetitosa e faladeira, com um vestido de domingo e uma rosa na orelha a partir do entardecer, afogando-se de calor por causa do estorvo de suas telas esplêndidas.
Uma tarde, quando ele tinha sete anos, havia entrado de repente no quarto dela e a surpreendera nua na cama com um de seus amantes casuais. Aquele percalço, do qual nunca haviam falado, estabeleceu entre eles uma relação de cumplicidade que era mais útil que o amor. No entanto, ele não foi consciente disso, nem de tantas outras coisas terríveis de sua solidão de filho único, até aquela noite em que se encontrou dando voltas na cama de uma triste água furtada de Paris, nem ninguém a quem contar seu infortúnio, e com uma raiva feroz contra si mesmo porque não podia suportar a vontade de chorar.
Foi uma insônia proveitosa. Na sexta-feira levantou estropiado pela noite ruim, mas decidido a definir sua vida. Decidiu violar a fechadura de sua maleta para mudar de roupa, pois as chaves de todas estavam na bolsa de Nena Daconte, com a maior parte do dinheiro e a caderneta de telefone onde talvez tivesse encontrado o número de algum conhecido de Paris.
Na cafeteria de sempre percebeu que havia aprendido a cumprimentar em francês, e a pedir sanduíches de presunto e café com leite. Também sabia que nunca lhe seria possível pedir manteiga ou ovos do jeito que fosse, porque nunca aprenderia a dizer, mas a manteiga era sempre servida com o pão, e os ovos cozidos estavam à vista no balcão e apanhava-os sem precisar pedir. Além disso, depois de três dias, o pessoal que servia estava familiarizado com ele, e o ajudava a se explicar.
Assim, na sexta-feira na hora do almoço, enquanto tentava botar a cabeça no lugar, pediu um filé com batatas fritas e uma garrafa de vinho. Então sentiu-se tão bem que pediu outra garrafa, bebeu-a até a metade, e atravessou a rua com a firme resolução de se meter no hospital à força. Não sabia onde encontrar Nena Daconte, mas em sua mente estava fixa a imagem providencial do médico asiático, e estava certo de encontrá-lo. Não entrou pela porta principal, mas pela de emergência, que lhe havia parecido menos vigiada, mas não conseguiu ir além do corredor onde Nena Daconte lhe dissera adeus com a mão. Um guarda com o avental salpicado de sangue perguntou-lhe algo, e ele não prestou atenção. O vigia seguiu-o, repetindo sempre a mesma pergunta em francês, e finalmente agarrou-o pelo braço com tanta força que o parou em seco. Billy Sánchez tentou se safar com um recurso de brigador, e então o vigia mandou-o à merda em francês, torceu-lhe o braço nas costas com uma chave mestra, e sem deixar de mandá-lo mil vezes à puta mãe que o pariu levou-o quase que suspenso até a porta, xingando de dor, e atirou-o como um saco de batatas no meio da rua.
Naquela tarde, dolorido pela lição, Billy Sánchez começou a ser adulto. Decidiu, como Nena Daconte teria feito, procurar seu embaixador. O porteiro do hotel, que apesar de sua cara de enfezado era muito serviçal, e além disso muito paciente com os idiomas, encontrou o número e o endereço da embaixada na lista telefônica, e anotou-os num cartão. Atendeu uma mulher muito amável, em cuja voz pausada e sem brilho Billy Sãnchez imediatamente reconheceu a dicção dos Andes. Começou por anunciar-se com seu nome completo, certo de impressionar a mulher com seus dois sobrenomes, mas a voz não se alterou no telefone. Ouviu-a explicar de cor a lição de que o senhor embaixador não estava em seu escritório no momento e não era esperado até o dia seguinte, mas de qualquer jeito não poderia recebê-lo sem hora marcada e só num caso especial. Billy Sánchez compreendeu então que tampouco por este caminho chegaria a Nena Daconte, e agradeceu a informação com a mesma amabilidade com que a tinha recebido. E pegou um táxi para a embaixada. Ficava no número 22 da rua do Eliseu, dentro de um dos setores mais agradáveis de Paris, mas a única coisa que impressionou Billy Sánchez, de acordo com o que ele mesmo me contou em Cartagena de Indias muitos anos depois, foi que o sol estava tão claro como no Caribe pela primeira vez desde a sua chegada, e que a torre Eiffel sobressaía por cima da cidade num céu radiante. O funcionário que o recebeu no lugar do embaixador parecia acabado de se restabelecer de uma doença mortal, não só pelo terno de veludo negro, mas também pelo sigilo de seus gestos e a mansidão da sua voz. Entendeu a ansiedade de Billy Sánchez, mas recordou, sem perder a doçura, que estavam num país civilizado cujas normas restritas se baseavam nos critérios mais antigos e sábios, ao contrário das Américas bárbaras, onde bastava subornar o porteiro para entrar nos hospitais. “Não, meu caro jovem”, disse. Não havia outro remédio além de submeter-se ao império da razão, e esperar até a terça-feira.
Continua
Imagem minha retirada do blogMomentos e olhares
Continuação do Conto Um rasto do teu sangue na neve de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
- Doutor - disse. - Ela está grávida.
- Quanto tempo?
- Dois meses.
O médico não deu a importância que Billy Sánchez esperava. “Fez bem em avisar”, disse, e foi atrás da maca. Billy Sánchez ficou parado na sala lúgubre, cheirando a suores de enfermos, e ficou sem saber o que fazer olhando o corredor vazio por onde haviam levado Nena Daconte, e depois sentou-se no banco de madeira onde havia outras pessoas esperando. Não soube quanto tempo ficou ali, mas quando decidiu sair do hospital era noite outra vez e continuava a garoar, e ele continuava sem saber nem ao menos o que fazer consigo mesmo, sufocado pelo peso do mundo.
Nena Daconte internou-se às 9:30 da terça-feira 7 de janeiro, conforme pude comprovar anos depois nos arquivos do hospital. Naquela primeira noite, Billy Sánchez dormiu no automóvel estacionado na frente da porta de emergência, e muito cedo, no dia seguinte, comeu seis ovos cozidos e duas xícaras de café com leite na cafeteria mais próxima que encontrou, pois não tinha feito uma refeição completa desde Madri. Depois voltou à sala de emergência para ver Nena Daconte, mas fizeram que ele entendesse que deveria se dirigir à entrada principal. Lá conseguiram, por fim, um asturiano de plantão que o ajudou a se entender com o porteiro, e este comprovou que, por certo, Nena Daconte estava registrada no hospital, mas que só eram permitidas visitas nas terças-feiras, das nove às quatro. Quer dizer, seis dias mais tarde. Tentou ver o médico que falava castelhano, que descreveu como um negro careca, mas ninguém resolveu seu problema a partir de dois detalhes tão simples.
Tranqüilizado com a notícia de que Nena Daconte estava no registro, voltou ao lugar onde havia deixado o automóvel, e um guarda de trânsito obrigou-o a estacionar dois quarteirões adiante, numa rua muito estreita e do lado dos números ímpares. Na calçada em frente havia um edifício restaurado com um letreiro: “Hotel Nicole.”, Tinha uma única estrela, uma sala de recepção muito pequena onde não havia mais que um sofá velho e um piano vertical, mas o proprietário de voz aflautada podia entender-se com os clientes em qualquer idioma desde que tivessem com que pagar. Billy Sánchez instalou-se com onze maletas e nove caixas de presentes no único quarto livre, que era uma água-furtada triangular no nono andar, aonde chegava-se sem fôlego por uma escada em espiral que tinha cheiro de couve-flor fervida. As paredes estavam forradas de cortinados tristes e pela única janela não cabia nada além da claridade turva do pátio interior. Havia uma cama para dois, um armário grande, uma cadeira simples, um bidê portátil e uma bacia com seu prato e sua jarra, de maneira que a única forma de ficar dentro do quarto era deitar na cama. Tudo era, pior que velho, desventurado, mas também muito limpo, e com um rastro sadio de desinfetante recente.
Para Billy Sánchez, a vida inteira não seria suficiente para decifrar os enigmas deste mundo fundado no talento da mesquinharia. Nunca entendeu o mistério da luz da escada que se apagava antes que ele chegasse ao seu andar, nem descobriu a maneira de tornar a acendê-la. Precisou de meia manhã para aprender que no desvão de cada andar havia um quartinho com uma privada, e já havia decidido usá-lo nas trevas quando descobriu por acaso que a luz acendia quando passava a tranca por dentro, para que ninguém a deixasse acesa por descuido. O chuveiro, que estava no extremo do corredor e que ele se empenhava em usar duas vezes por dia como na sua terra, era pago em separado e à vista, e a água quente, controlada pela gerência, acabava em três minutos. Ainda assim, Billy Sánchez teve suficiente clareza de juízo para compreender que aquela ordem tão diferente da sua era, de qualquer forma, melhor que a intempérie de janeiro, e sentia-se além disso tão atordoado e solitário que não podia entender como conseguiu viver algum dia sem o amparo de Nena Daconte.
Assim que subiu ao quarto, na manhã da quarta-feira, atirou-se de boca na cama vestindo a jaqueta, pensando na criatura de prodígio que continuava dessangrando na calçada em frente, e muito rápido sucumbiu num sono tão natural que quando despertou eram cinco horas no relógio, mas não conseguiu deduzir se eram da tarde ou do amanhecer, nem de que dia da semana nem em que cidade de vidros açoitados pelo vento e pela chuva. Esperou acordado na cama, sempre pensando em Nena Daconte, até comprovar que na realidade amanhecia. Então foi tomar café da manhã na mesma cafeteria do dia anterior, e ficou sabendo que era quinta-feira. As luzes do hospital estavam acesas e havia parado de chover, e ele permaneceu encostado no tronco de uma castanheira na frente da entrada principal, por onde entravam e saíam médicos e enfermeiras de uniformes brancos, com a esperança de encontrar o asiático que tinha recebido Nena Daconte. Não o viu, e tampouco naquela tarde depois do almoço, quando teve que desistir da espera porque estava congelando.
Continua
Jorge
PS:Imagem minha, retirada do blog Momentos e olhares
Continuação do Conto Um rasto do teu sangue na neve de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
- Imagine só - disse. - Um rastro de sangue na neve de Madri a Paris. Você não acha bonito para uma canção?
Não teve tempo de tornar a pensar. Nos subúrbios de Paris, o dedo era um manancial incontrolável, e ela sentiu de verdade que a alma estava indo embora pela ferida. Havia tentado cortar o fluxo com o rolo de papel higiênico que levava na frasqueira, mas demorava mais em vendar o dedo que em jogar pela janela as tiras de papel ensangüentado. A roupa que vestia, o casaco, os assentos do carro, iam se empapando pouco a pouco, mas de maneira incorrigível. Billy Sánchez assustou-se de verdade e insistiu em procurar uma farmácia, mas ela já sabia que aquilo não era questão para boticários.
- Estamos quase na porta de Orleans - disse. - Continue em frente, pela avenida General Leclerc, que é a mais larga e com muitas árvores, e depois vou dizendo o que fazer.
Foi o trajeto mais árduo da viagem inteira. A avenida General Leclerc era um nó infernal de automóveis pequenos e motocicletas, engarrafados nos dois sentidos, e dos caminhões enormes que tentavam chegar aos mercados centrais. Billy Sánchez ficou tão nervoso com o estrondo inútil das buzinas que trocou insultos aos gritos, em língua de bandoleiros de corrente na mão, com vários motoristas e até tentou descer do carro para brigar com um, mas Nena Daconte conseguiu convencê-lo de que os franceses eram as pessoas mais grosseiras do mundo, mas não trocavam porrada nunca. Foi mais uma prova de seu bom senso, porque naquele momento Nena Daconte estava fazendo esforços para não perder a consciência.
Só para sair da praça León de Belfort precisaram de mais de uma hora. Os cafés e as lojas estavam iluminados como se fosse meia-noite, pois era uma terça-feira típica dos janeiros de Paris, encapotados e sujos, e com uma chuvinha tenaz que não chegava a se concretizar em neve. Mas a avenida Denfert-Rochereau estava mais livre, e uns poucos quarteirões adiante Nena Daconte indicou ao marido que virasse à direita, e estacionaram na frente da entrada de emergência de um hospital enorme e sombrio.
Precisou de ajuda para sair do carro, mas não perdeu a serenidade nem a lucidez. Enquanto chegava o médico de plantão, deitada numa maca, respondeu à enfermeira o questionário de rotina sobre sua identidade e seus antecedentes de saúde. Billy Sánchez levou a bolsa para ela e apertou sua mão esquerda onde então estava o anel de casamento, e sentiu-a lânguida e fria, e seus lábios haviam perdido a cor. Permaneceu ao seu lado, a mão na dela, até que o médico de plantão chegou e fez um exame muito rápido no dedo ferido. Era um homem muito jovem, com a pele da cor do cobre antigo e a cabeça raspada. Nena Daconte não prestou atenção nele, e dirigiu ao marido um sorriso lívido.
- Não se assuste - disse, com seu humor invencível. - A única coisa que pode acontecer é este canibal me cortar a mão para comer.
O médico terminou seu exame, e então os surpreendeu com um castelhano muito correto, embora com um estranho sotaque asiático.
- Não, meninos - disse. - Este canibal prefere morrer de fome do que cortar mão tão bela.
Eles se ofuscaram, mas o médico tranqüilizou-os com um gesto amável. Depois mandou que levassem a maca, e Billy Sánchez quis acompanhá-la preso à mão da mulher. O médico o deteve pelo braço.
- O senhor não - disse. - Ela vai para a terapia intensiva.
Nena Daconte tornou a sorrir para o marido, e continuou dando adeus com a mão até que a maca se perdeu no fundo do corredor. O médico ficou para trás, estudando os dados que a enfermeira havia escrito numa tabuinha. Billy Sánchez chamou-o.
- Doutor - disse. - Ela está grávida.
Continuação do Conto Um rasto do teu sangue na neve de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
- Macho não come doce - disse.
Pouco antes de Orleans a bruma desvaneceu, e uma lua muito grande iluminou a terra semeada e nevada, mas o tráfego ficou mais difícil pela confluência dos enormes caminhões de legumes e cisternas de vinho que se dirigiam a Paris. Nena Daconte gostaria de ajudar seu marido no volante, mas nem se atreveu a insinuar isso, porque ele havia advertido na primeira vez em que saíram juntos que não há maior humilhação para um homem que se deixar conduzir pela mulher. Sentia-se lúcida após quase cinco horas de bom sono, e além disso estava contente por não ter parado num hotel do interior da França, que conhecia desde pequena em numerosas viagens com seus pais. “Não há paisagens mais belas no mundo”, dizia, “mas você pode morrer de sede sem encontrar ninguém que lhe dê um copo d’água de graça!”. Tão convencida estava que na última hora havia metido um sabonete e um rolo de papel higiênico na frasqueira, porque nos hotéis da França nunca havia sabonete e o papel nas privadas eram os jornais da semana anterior cortados em quadradinhos e pendurados num gancho. A única coisa que lamentava naquele momento era haver desperdiçado uma noite inteira sem amor. A réplica de seu marido foi imediata.
- Neste instante eu estava pensando que deve ser do caralho trepar na neve - disse. - Aqui mesmo, se você quiser.
Nena Daconte pensou no assunto a sério. Na beira da estrada, a neve debaixo da lua tinha um aspecto macio e cálido, mas à medida que se aproximavam dos subúrbios de Paris o tráfego era mais intenso, e havia núcleos de fábricas iluminadas e numerosos operários de bicicleta. Se não fosse inverno, já estariam em pleno dia.
- É melhor esperar até Paris - disse Nena Daconte. - Bem quentinhos e numa cama com lençóis limpos, que nem gente casada.
- É a primeira vez que você falha - disse ele.
- Claro - replicou ela. - É a primeira vez que somos casados.
Pouco antes do amanhecer lavaram o rosto e urinaram numa pensão do caminho, e tomaram café com croissants quentes no balcão onde os caminhoneiros tomavam vinho tinto no café da manhã.
Nena Daconte havia percebido no banheiro que tinha manchas de sangue na blusa e na saia, mas não tentou limpá-las. Jogou no lixo o lenço empapado, mudou a aliança de casamento para a mão esquerda e lavou bem o dedo ferido com água e sabão. A picada era quase invisível. No entanto, assim que voltaram ao carro tornou a sangrar, e Nena Daconte deixou o braço pendurado pela janela, convencida de que o ar glacial das plantações tinha virtudes de cauterizador. Foi outro recurso em vão, mas ainda assim ela não se alarmou. “Se alguém quiser nos encontrar será muito fácil”, disse com seu encanto natural. “Só vai ter que seguir o rastro do meu sangue na neve.”, Depois pensou melhor no que tinha dito, e seu rosto floresceu nas primeiras luzes do amanhecer.
- Imagine só - disse. - Um rastro de sangue na neve de Madri a Paris. Você não acha bonito para uma canção?
Continuação do Conto Um rasto do teu sangue na neve de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
- Fiz de propósito - disse -, para que reparassem no meu anel.
Continuação do conto O Rastro do teu Sangue na neve, de Gabriel Garcia Marquez, parte anterior aqui
- Vi maiores e mais firmes - disse, dominando o terror. - Portanto, pense bem no que você vai fazer, porque comigo vai ter de se comportar melhor que um negro.
Na verdade, Nena Daconte não apenas era virgem, como nunca até aquele momento havia visto um homem nu, mas o desafio acabou sendo eficaz. A única coisa que ocorreu a Billy Sánchez foi disparar um murro de raiva contra a parede com a corrente enrolada na mão, e despedaçou os ossos. Ela levou-o em seu automóvel para o hospital, ajudou-o a superar a convalescença, e no final aprenderam juntos a fazer o amor de boas maneiras. Passaram as tardes difíceis de junho na varanda interior da casa onde tinham morrido seis gerações de próceres da família de Nena Daconte, ela tocando canções da moda no sax, e ele com a mão engessada contemplando-a no mormaço com um estupor sem alívio. A casa tinha numerosas janelas de corpo inteiro que davam para o tanque de podridão da baía, e era uma das maiores e mais antigas do bairro da Manga, e sem dúvida a mais feia. Mas a varanda de lajotas axadrezadas onde Nena Daconte tocava sax era um remanso no calor das quatro, e dava para um pátio de sombras grandes com pés de manga e de banana-ouro, debaixo dos quais havia uma tumba com uma lousa sem nome, anterior à casa e à memória da família. Mesmo os menos entendidos em música pensavam que o som do saxofone era anacrônico numa casa de tanta estirpe. “Parece um navio”, dissera a avó de Nena Daconte quando ouviu pela primeira vez. Sua mãe havia tentado em vão de que o tocasse de outro modo, e não como ela fazia por comodidade, com a saia puxada até as coxas e os joelhos separados, e com uma sensualidade que não lhe parecia essencial para a música. “Não me importa que instrumento você toca”, dizia, “desde que toque com as pernas fechadas.”
Mas foram esses ares de adeuses de barcos e essa obstinação de amor que permitiram a Nena Daconte romper a casca amarga de Billy Sánchez. Debaixo da triste reputação de bruto que ele tinha, muito bem sustentada pela confluência de dois sobrenomes ilustres, ela descobriu um órfão assustado e manso. Chegaram a se conhecer tanto enquanto soldavam-se os ossos de sua mão que ele mesmo se assombrou da fluidez com que ocorreu o amor quando ela levou-o à sua cama de donzela numa tarde de chuvas em que ficaram sozinhos na casa. Todos os dias naquela hora, durante quase duas semanas, rolaram nus debaixo do olhar atônito dos retratos de guerreiros civis e avós insaciáveis que os haviam precedido no paraíso daquela cama histórica. Mesmo nas pausas do amor permaneciam nus com as janelas abertas respirando a brisa de escombros de barcos da baía, seu cheiro de merda, e ouvindo no silêncio do saxofone os ruídos cotidianos do pátio, a nota única do sapo debaixo das matas de bananeiras, a gota d’água na tumba de ninguém, os passos naturais da vida que antes não tinham tido tempo de conhecer. Quando os pais de Nena Daconte regressaram à casa, eles haviam progredido tanto no amor que o mundo já não era suficiente para outra coisa, e faziam a qualquer hora e em qualquer lugar, tratando de inventá-lo outra vez cada vez que faziam.
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Continuação do conto O Rastro do teu Sangue na neve, de Gabriel Garcia Marquez, primeira parte aqui
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-É só um espinho
Antes de Bayonne voltou a nevar. Não eram mais que sete da noite, mas encontraram as ruas desertas e as casas fechadas pela fúria da borrasca, e após muitas voltas sem encontrar uma farmácia decidiram continuar em frente. Billy Sánchez alegrou-se com a decisão. Tinha uma paixão insaciável pelos automóveis raros e um papai com demasiados sentimentos de culpa e recursos de sobra para agradá-lo, e nunca havia dirigido nada igual àquele Bentley conversível de presente de casamento. Era tanta a sua embriaguez ao volante que quanto mais andava menos cansado se sentia. Estava disposto a chegar naquela noite a Bordeaux, onde tinham reservado a suíte nupcial do hotel Splendid, e não haveria ventos contrários nem neve suficiente no céu para impedi-lo. Nena Daconte, por sua vez, estava esgotada, sobretudo por causa do último trecho da estrada de Madri, que era uma pirambeira de cabras açoitada pelo granizo. Assim, depois de Bayonne enrolou um lenço no dedo, apertando bem para deter o sangue que continuava fluindo, e dormiu.