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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
E então um dia a Natureza condoeu-se daquela fraca borboleta.
De asas mutiladas por homens repletos de altruísmo, resolveu retornar ao purgatório casulo a fim de tornar-se magra, mas tolerável lagarta. Ainda hoje mastiga, autômata, seu insosso maço de folhas secas.
Odiava o modo como meu pai me olhava. Aquele pestanejar de pálpebras e o quase imperceptível balançar de cabeça ― que oscilava entre a compaixão e o desapontamento ― eram o meu regime. Ele me condenava por eu não ter herdado a macheza atávica que me havia sido destinada. Meus gestos tornavam os corredores de nossa casa escorregadios, pegajosos, imundos. Nada que eu fizesse para agradá-lo surtia efeito. Meus irmãos eram os varões. Eu a varíola.
Desdenhosos lacaios da aversão que papai me dirigia, os espelhos condenavam meus olhos, o som de minha voz e os pensamentos que eu havia alcunhado secretamente de sombrios. O eu refletido era de um sarcasmo aterrador, ria de mim com uma paixão violenta. Por ser meu oposto, era o desejado filho, aquele que não possuía pensamentos sombrios.
Eu sofria. E minha dor era um minotauro que me perseguia por infinitos corredores de dúvida, culpa e negação. Sempre que eu cedia aos meus proibidos impulsos, mais próxima espreitava a fera mitológica. Seu espectro grotesco afugentava os corpos nus e de masculinidade hiperbólica que vagavam por meus deslizes. Na equivocada matemática de meu corpo, cabeça, tronco e membros resultaram em um somatório obtuso. A aritmética de minha identidade adicionou-me, subtraiu-me, multiplicou-me, dividiu-me, potencializou-me e extraiu minhas raízes. E, no final, resultei em um total estéril.
Descobri ainda em minha juventude que eu não era nada. Por isso meu pai quase não me via, e os espelhos tampouco me enxergavam sem desdém.
Leprosos, diabéticos, hemofílicos, todos os mazelados despertavam uma mórbida inveja em mim, o anseio de ser um deles. Eu amava os pontos cardeais esculpidos sobre a topografia da dor. A convalescença contínua permite que os doentes sejam tratados com misericórdia. Mas, ninguém cuidaria de mim. Pessoa alguma se apiedaria das pústulas assintomáticas de minha vergonhosa doença, meu desequilíbrio secreto, meu mal sombrio.
Quantas tentativas infelizes, tantas investidas em inúmeras religiões. E nenhuma foi capaz de adormecer minhas madrugadas em claro. Eu era a serpente, carregada de peçonha, que secretava muco diante da serena pureza de meus bons pregadores. As orações misturavam-se ao meu execrável orgasmo, e Deus não permitia que eu pensasse em amor.
Prostrado diante da humilhante condição de ser quem ― contra o meu próprio arbítrio ― eu era, resolvi tornar-me outro. Um outro ao qual a óptica paterna pudesse encarar, sem constrangimentos. Um outro que mimetizasse aquele que vivia no interior do espelho.
Arquitetei uma nova identidade. Adquiri o método que, biologicamente, não me havia sido transmitido. Não sei bem se resultei em um ser humano feliz. Mas, ora! De que vale a felicidade quando ela chega dentro de uma garrafa, solta no remoinho? A felicidade é privilégio daqueles que não temem as moléstias da alma. Eu temo.
Ajoelhada ao meu lado, diante do altar, exibo a mulher que sitiará meus vícios e me parirá filhos saudáveis. Enquanto meu pai me observa com ares de absolvição, sou acometido por um irrefreável pensamento sombrio. Nego-me a abater-me diante dele. Mas, o que importa agora? O pensamento é uma mácula que os olhos não veem. Venci-me. Derrotei-me. Logo estarei casado.
Que moço simpático, que rapaz gostoso é esse padre!
Troquem-se as alianças. Amém.
Emerson Braga
Retirado de Samizdat
E então um dia a Natureza condoeu-se daquela fraca borboleta.
De asas mutiladas por homens repletos de altruísmo, resolveu retornar ao purgatório casulo a fim de tornar-se magra, mas tolerável lagarta. Ainda hoje mastiga, autômata, seu insosso maço de folhas secas.
Odiava o modo como meu pai me olhava. Aquele pestanejar de pálpebras e o quase imperceptível balançar de cabeça ― que oscilava entre a compaixão e o desapontamento ― eram o meu regime. Ele me condenava por eu não ter herdado a macheza atávica que me havia sido destinada. Meus gestos tornavam os corredores de nossa casa escorregadios, pegajosos, imundos. Nada que eu fizesse para agradá-lo surtia efeito. Meus irmãos eram os varões. Eu a varíola.
Desdenhosos lacaios da aversão que papai me dirigia, os espelhos condenavam meus olhos, o som de minha voz e os pensamentos que eu havia alcunhado secretamente de sombrios. O eu refletido era de um sarcasmo aterrador, ria de mim com uma paixão violenta. Por ser meu oposto, era o desejado filho, aquele que não possuía pensamentos sombrios.
Eu sofria. E minha dor era um minotauro que me perseguia por infinitos corredores de dúvida, culpa e negação. Sempre que eu cedia aos meus proibidos impulsos, mais próxima espreitava a fera mitológica. Seu espectro grotesco afugentava os corpos nus e de masculinidade hiperbólica que vagavam por meus deslizes. Na equivocada matemática de meu corpo, cabeça, tronco e membros resultaram em um somatório obtuso. A aritmética de minha identidade adicionou-me, subtraiu-me, multiplicou-me, dividiu-me, potencializou-me e extraiu minhas raízes. E, no final, resultei em um total estéril.
Descobri ainda em minha juventude que eu não era nada. Por isso meu pai quase não me via, e os espelhos tampouco me enxergavam sem desdém.
Leprosos, diabéticos, hemofílicos, todos os mazelados despertavam uma mórbida inveja em mim, o anseio de ser um deles. Eu amava os pontos cardeais esculpidos sobre a topografia da dor. A convalescença contínua permite que os doentes sejam tratados com misericórdia. Mas, ninguém cuidaria de mim. Pessoa alguma se apiedaria das pústulas assintomáticas de minha vergonhosa doença, meu desequilíbrio secreto, meu mal sombrio.
Quantas tentativas infelizes, tantas investidas em inúmeras religiões. E nenhuma foi capaz de adormecer minhas madrugadas em claro. Eu era a serpente, carregada de peçonha, que secretava muco diante da serena pureza de meus bons pregadores. As orações misturavam-se ao meu execrável orgasmo, e Deus não permitia que eu pensasse em amor.
Prostrado diante da humilhante condição de ser quem ― contra o meu próprio arbítrio ― eu era, resolvi tornar-me outro. Um outro ao qual a óptica paterna pudesse encarar, sem constrangimentos. Um outro que mimetizasse aquele que vivia no interior do espelho.
Arquitetei uma nova identidade. Adquiri o método que, biologicamente, não me havia sido transmitido. Não sei bem se resultei em um ser humano feliz. Mas, ora! De que vale a felicidade quando ela chega dentro de uma garrafa, solta no remoinho? A felicidade é privilégio daqueles que não temem as moléstias da alma. Eu temo.
Ajoelhada ao meu lado, diante do altar, exibo a mulher que sitiará meus vícios e me parirá filhos saudáveis. Enquanto meu pai me observa com ares de absolvição, sou acometido por um irrefreável pensamento sombrio. Nego-me a abater-me diante dele. Mas, o que importa agora? O pensamento é uma mácula que os olhos não veem. Venci-me. Derrotei-me. Logo estarei casado.
Que moço simpático, que rapaz gostoso é esse padre!
Troquem-se as alianças. Amém.
Emerson Braga
retirado de Samizdat