
O futebol tem-se revelado, para mim, muito importante, culturalmente, por mais estranho que pareça.
Há dias, à hora das notícias, liguei o televisor para a RTP-1, com a preocupação de saber que amplitude vão ter os novos cortes que o governo vai aplicar às pensões dos reformados. Em vão: estava a transmitir imagens de uma partida de futebol.
Tinha havido uma final importante, a da Taça de Portugal, de que eu vira a 2ª parte. Não ligo muito ao futebol, devido aos aspetos arruaceiros que ele transmite demasiadas vezes. Gosto de ver as partidas relevantes, desde que o desempenho seja leal, pujante e criativo, mas dispenso imagens requentadas…
Mudei para a SIC, com vontade de me esclarecer se eram credíveis as sondagens que davam vantagem, nas eleições de hoje, aos partidos responsáveis pelas governações que nos trouxeram ao pântano e pelas que nos afogaram nele. Em vão: estava a falar o treinador do Benfica, a equipa vitoriosa.
O futebol é um espetáculo visual, cujos bons lances são, para alguns, objetos estéticos. Para mim, é como o sexo: é para praticar ou ver, mas não para ouvir declarações dos intervenientes.
Mudei para a TVI, resignado a ouvir de algum governante mais despudorado que o país está prestes a atingir o alto objetivo para sair da crise que é poder pedir dinheiro emprestado aos “mercados”. Em vão: estava a transmitir a receção/homenagem que a câmara de Lisboa dispensava à equipa vencedora e seus dirigentes.
Espero que não estivesse lá nenhum daqueles intervenientes que às vezes se envolvem em pancadaria. O futebol é uma força relevante em que parte da sociedade se revê, cujos exemplos interioriza e copia e portanto modeladora de comportamentos e atitudes perante o “outro”. As agressões e os tumultos são altamente antipedagógicos e sendo desculpados e, neste caso, premiados, consolidam a mensagem de que é aceitável agredir para evitar um golo ou para reclamar de uma decisão do árbitro.
Mudei para a SIC-Notícias, disposto a espantar-me, como habitualmente, com a criatividade das manipulações, dos esquemas e das subversões que os intervenientes do sistema terão usado para desresponsabilizar, descriminalizar, libertar, e talvez indemnizar o corrupto do dia. Em vão: tratava dum assunto de que já não me lembro, mas logo de seguida passou para a divulgação da lista dos jogadores da equipa portuguesa ao mundial do Brasil. A coisa demorou uns três minutos, mas depois voltou ao Benfica.
Não sem que eu vislumbrasse, de memória, umas cotoveladas no rosto do adversário, um pé em riste à canela ou um bando vociferante à volta de um árbitro. Espero não vir a ficar envergonhado com tal representação.
Mudei para a RTP-Informação, apreensivo com a possibilidade de as potências em conflito já terem feito alastrar a guerra civil a toda a Ucrânia. Em vão: estava a transmitir a festa dos adeptos do Benfica no largo do município.
Acho divertido, mas dramático, que os desgraçados que ganham o salário mínimo ou menos vão a todo o lado vitoriar os seus milionários ídolos, mas pior, vão aos estádios pagar bilhetes de preço proibitivo, que alimentam uma engrenagem financeira que tem aspetos obscenos de desigualdade social.
Mudei para a TVI-24, tentando adivinhar quantos mortos provocara nesse dia a democracia implantada pelos americanos no Iraque. Em vão: estava a decorrer uma mesa-redonda em que um painel de comentadores perorava sobre as escolhas do selecionador nacional.
É inacreditável a quantidade de horas que variados painéis de comentadores conseguem estar a falar de futebol, às vezes de um jogo apenas. Com certeza que têm espetadores, mas tenho dificuldade em imaginar milhares de pessoas em suas casas a prestar atenção a uns tipos que apenas falam de um espetáculo que é eminentemente visual.
Já sem grandes esperanças de escapar ao futebol, mudei para a RTP-2. Mas não: foi assim que tive oportunidade de assistir a um programa sobre endocrinologia e ambiente e os efeitos nefastos que um ambiente cada vez mais poluído tem tido para a saúde. Muito interessante e pedagógico. Se não fosse o futebol, tê-lo-ia perdido. Só lhe posso estar agradecido!
Joaquim Bispo
retirado de Samizdat