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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Não sabias ainda o que ia suceder.
Não podias prever.
Preparavas um caldo de osso de borrego com nabiça e tinhas ouvido a porta de entrada e, já nem davas por isso, tinha-se-te descompassado o modo de sorver o ar que respiravas.
O corpo dele ficou a ocupar a porta que da cozinha levava à salinha de entrada que servia também de sala de jantar e sala de ver televisão, e que era onde deitavas a mais velhinha que, quando tinham alugado o T1, nem tinham pensado em fazer família, que a bem dizer nem tu nem ele nunca tinham pensado coisa nenhuma, apaixonados, doidos de quererem o corpo um do outro, e casaram poucos meses depois da noite em que se tinham visto pela primeira vez e tu nunca tinhas ouvido dizer dele, e havia tantos outros no grupo de colegas de trabalho e amigos, mas ou seria o destino a comandar-te ou terá sido o modo de ele te ter olhado, ou terás sido tu insinuante e ele nem mais te deixou, que assim to repetiria: “essas mamas redondas deram comigo em doido”; e tu embevecida do seu porte atlético, do cabelo já a ficar grisalho nas fontes apesar de tão jovem; ou terá sido o modo como te colocou a mão no ombro a pedir, soprando-te desasossegos em cada sílaba, a boca bem chegada ao lóbulo da tua orelha esquerda: “passas-me esse copo, por favor”. Ficaram nesse transe de estar apaixonados, ainda, e ainda mais, depois de terem passado juntos o início desse dia e o dia inteiro que era um dia de trabalho e ele terá dito: ”que se lixe” e disseste também tu, ou nenhum disse, ficaram sem sequer dar acordo do nascer do sol nem do cair da noite, tu e ele a rebolar desejos no tugúrio que era o quarto onde ele vivia emigrante de uma outra zona do país a fazer um serviço para a empresa onde era soldador.
E depois passaram a encontrar-se, a viver juntos quase sempre, até ao dia em que disseram um ao outro: “e se juntássemos os haveres que não temos?” e a rirem alto para o ar quente dum final de Maio. E tu terás olhado as casas que assomavam na outra margem a esconderem o bairro em que tinhas vivido até seres a namorada dele: tu a querer esquecer, a querer lembrar apenas que agora serias tu a comandar a tua vida.
Casaram sem cerimónia nem padrinhos nem convidados: “apenas eu e tu” tinhas dito, e em casa participaste que não voltavas num bilhete que deixaste na sala, e nenhum deles, mãe e padrasto, terá acreditado, tanto que nunca te procuraram, nem quando deixaste uma mensagem em que dizias: nasceu uma menina, nem quando escreveste num SMS: nasceu outra menina.
Fátima Santos
Retirado de Sanizdat