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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
O sangue. Esse delator maldito que navega arrogante por veias e artérias. É o sangue que vai lhe contar o que ele não quer saber. Quem ele não é; quem ele nunca foi. Que não é o primogênito de seus pais. Nem o irmão de seus irmãos. As sobrancelhas grossas como as do pai, o nariz alongado da mãe, o sinal sobre o ombro esquerdo: coincidências fabricadas à força do afeto. E ele não será o filho de mais ninguém. Somente um nada sem raízes próprias. Um pastiche.
O sangue vai mostrar que ele não serve, que não é compatível. Que num minuto é o provável doador para o seu pai e, no outro, apenas um desconhecido, uma conta que não fecha. E ele, que nunca se afasta dos fatos, não saberá o que fazer com os fatos: se confrontará a mãe ainda ali, no hospital precário, roubando para si uma cena que não é sua; se exigirá com urgência os detalhes da sua história desviada; se apenas perguntará por quê.
Ele ainda não sabe que um estopim será aceso. No instante em que a mãe e os irmãos lhe pedirem que compreenda. Compreender é tudo o que ele não conseguirá. Ao contrário, será tomado por um deboche furioso. Uma vontade insana de chutar as portas frágeis da UTI onde o pai está deitado sem saber de nada. E de sacudir aquele homem que o enganou por tanto tempo. O pai paciente e amigo que o ensinou a assinar seu nome e sobrenome. E lhe mostrou as letras, os números, os mapas, os elementos, as constelações. O pai que lhe mostrou a vida por meio de uma prática respeitosa de atos sem voz. O pai que o levou para nadar, para andar a cavalo, para navegar no mar que ambos tanto amam. A quem entregou seus boletins escolares, suas dúvidas, suas discussões adolescentes, suas broncas com Deus, seus diplomas, suas paixões, seus argumentos. O homem que, ele ainda não sabe, será, brevemente, um estranho.
Ninguém devia saber assim, como ele saberá, que foi rejeitado. Por uma mulher quem nunca chamou de mãe. Que o jogou fora ou o entregou sob um pretexto qualquer; talvez, por dinheiro. Por um homem a quem nunca chamou de pai. Que sequer o conheceu ou que provavelmente nem tenha sabido que o fez existir. Ninguém devia se deparar com a própria história de repente. Não para descobrir que é uma história oca. Nem desse jeito, por acaso, por causa de um acidente de carro estúpido. O pai lançado de cabeça no asfalto; a falta de recursos da cidade pequena; a necessidade de uma transfusão; ele se oferecendo para doar, apesar da insistência estranha da mãe em lhe dizer que não precisa, que não precisa... Ele lendo na ficha do pai: sangue tipo A+. E se lembrando de que o sangue da mãe é O+, e de que o sangue dele é B-. Tudo isso antes que a voz apressada da enfermeira sentencie que o doador tem que ser da família ou alguém compatível.
Um homem não devia ser lançado assim ao inferno. Cara ou coroa?, perguntam-lhe as atitudes. Desnorteio; e ele se reconduz, feto, ao útero de uma narrativa não escrita. Pertencimento; e ele volta, inteiro, à UTI onde há muito mais que sangue a ser doado. Porque sangue é uma conta que não fecha.
Cinthia Kriemler
Ilustração: O Nascimento do Mundo, Salvador Dalí
Retirado de Samizdat
Imagem do Público
Eu continuo a pasmar com estas coisas, sou dador de sangue e tinha ideia que o país não aproveitava completamente as dávidas porque não tínhamos a tecnologia que o possibilitava... hoje de manhã fiquei incrédulo quando nas noticias da Antena 1 se referiam a esta notícia do Público e diziam:
"....veio a público a notícia de que, apesar de o IPS dispor, em Lisboa, de câmaras de frio para conservar o plasma desde 2002, estas estavam a ser usadas como armazém para guardar, por exemplo, papéis, e este componente do sangue ia para o lixo,.."
Ou seja, em 2002 o país gastou uma pipa de massa para comprar as câmaras e alguém achou que aquilo era jeitoso era para arquivar pastas... assim de repente, não podiam ter ido ao Ikea?... de certeza que encontravam uns arquivadores mais em conta.
Entretanto todos os anos se inutilizam perto de 350000 unidades de plasma porque não há forma de as transportar e armazenar, plasma que se exportado poderia ter um valor de mercado de perto de seis milhões de Euros, seis milhões por ano, já viram a quantidade de arquivadores e unidades de transporte que se poderia comprar com este dinheiro?
Por vezes perguntamo-nos como chegou o país a este ponto? depois de ler noticias como esta não é difícil de entender, porque imagino que exemplos como este haverá aos milhares em todas as áreas... Cabe na cabeça de alguém utilizar para arquivo câmaras frigoríficas que é suposto servirem para preservar plasma humano?.. e durante 10 anos as diversas administrações da saúde e do Instituto Português do Sangue viram esta situação e não mexeram um dedo para a resolver? porquê?
O problema é que não há veículos para transporte em condições?..e são necessários 10 anos para comprar uns veículos de transporte? por favor, isto é de uma incompetência e desleixo atroz, é inacreditável.
O senhor secretário de estado Leal da Costa, diz que vai tomar medidas, e que tal começar por identificar os culpados de que esta situação se tenha arrastado por 10 anos e os fazer pagar pela incúria e pelos prejuízos que causaram ao estado e aos portugueses?
Jorge Soares