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Hoje é dia de São Martinho, dia de comer castanhas e de provar o vinho, não guardo grande memória de magustos, na Venezuela não havia castanhas e num país em que é verão o ano inteiro, nunca ninguém ouviu falar do verão de São Martinho.

Na verdade, para mim este dia recorda-me uma enorme solidão, estava em Lisboa, vivia num quarto, lembro-me de ser dia de São Martinho e ir do IST para São Bento a pé. Não sei porquê,  mas recordo-me de uma Rua de São Bento completamente deserta, talvez por isso dei por mim a pensar que naquele momento os meus pais estariam em casa a festejar o dia e a comer castanhas. Senti uma enorme solidão, uma sensação de não ser de ali, nem de lá, de não ser de lado nenhum.

Este é um dia de lendas, há a lenda do Santo, que no inicio era soldado e que um dia de Novembro, muito frio e chuvoso, estando em França ao serviço do Imperador, ia Martinho no seu cavalo a caminho da cidade de Amiens quando, de repente, começou uma terrível tempestade. A certa altura surgiu à beira da estrada um pobre homem a pedir esmola.

Como nada tivesse, Martinho, sem hesitar, pegou na espada e cortou a sua capa de soldado ao meio, dando uma das metades ao pobre para que este se protegesse do frio. Nessa altura a chuva parou e o Sol começou a brilhar, ficando, inexplicavelmente, um tempo quase de Verão.

 
A origem do magusto não é muito clara, mas há quem acredite  que é o vestígio dum antigo sacrifício em honra dos mortos e refere que em Barqueiros era tradição preparar, à meia-noite, uma mesa com castanhas para os mortos da família irem comer; ninguém mais tocava nas castanhas porque se dizia que estavam “babada dos defuntos”. .... felizmente já ninguém se lembra desta ultima parte, é muito mais lógico serem os vivos a comer as castanhas.
 
Quanto ao já famoso verão de São Martinho que é suposto instalar-se por estes dias, lembro-me de algures ter visto um metereologista explicar que mais ou menos por esta altura o nosso anticiclone costuma deslocar-se e permanecer uns dias de forma a impedir a entrada de massas de ar, o que nos costuma trazer um inicio de Novembro soleado, cruriosamente em França, lugar de origem do Santo, costuma chover e até nevar, o que só prova que ninguém é profeta na sua terra.... isso ou o anticiclone não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo 
 
O texto é um repost, foi escrito e publicado em 2009, lá bem no inicio do blog, a fotografia é actual, da semana passada, as castanhas são fritas, numa daquelas fitadeiras sem óleo, experimentem, ficam óptimas
 
Fonte Municipio de Mirandela
 
Jorge Soares

publicado às 19:20

Conto - O menino

por Jorge Soares, em 18.04.15

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São os olhos dele que não me deixam dormir. Os olhos opacos, estáticos, engessados, pousados na ausência. Eles não pedem, esses olhos. Não se movem em buscas. Sabem que seja nos arredores, seja no imensurável do longe, o que há é o nada. Não, não é. Antes fosse o nada. Esse vazio que não acalenta, mas que também não dói. O que cerca esses olhos vazios é o tudo. O inalcançável e esfuziante colorido do tudo. Que não lhe pertence. 
 
Ele apenas desistiu. Sabe que os vidros das vitrines foram feitos para promover o apartheid do pão. Ele sabe — aprendeu nas aulas de cotidiano — que lugar de menino pobre e preto é no sinal dos cruzamentos, nos montes de lixo, nos becos do morro, no papelão das caixas desmembradas em camas, na porta dos cafés pedindo um trocado e ganhando deboche. E limpa com cuspe o sangue do dedo que machucou na véspera. E cheira um pouco de thinner pra matar a fome que nem é de véspera. E não volta para o barraco pobre onde vive com a mãe porque lá agora tem um homem que faz a sua mãe de pasto, e que faz os filhos da sua mãe de pasto. 
 
Ele não quer olhar mais nada. Não quer ver o que não pode ter. Nem quer ver o que incomoda. Como a piedade nos olhos da mulher que lhe trouxe comida. Foi ontem? Ou anteontem? Ela passou as mãos nos seus cabelos sujos e emaranhados e sorriu e perguntou o nome dele e sorriu de novo. Depois lhe deu a marmita embrulhada num saco de plástico branco. E ele não aguentou. Sentiu o corpo esquentando, tremendo, se preparando para um abraço que não existiria. Mas existiu. Existiu, sim. E aí ela foi embora. Tinha mesmo que ir. Todos vão. 
 
Por isso ele não quer mais ver. Não ia suportar outro sorriso. Não para depois ter que olhar novamente para a feiura das calçadas cheias de escarros. Ter que olhar para a lata de cola, para os pés descalços, para o dedo sujo de sangue que ele vai limpar mais uma vez com a saliva grossa. Ele não quer mais ver o sol que é amarelo como o dos desenhos dos meninos que ele viu no mural do pátio da escolinha. Viu pela grade. E achou bonito. E quis ter lápis de cor de ponta afiada para desenhar um sol para si mesmo. Para guardar no bolso do short surrado e iluminar o breu do medo.
 
Ele não quer mais ver o que é bonito. Nem o céu cheio de estrelas, nem as nuvens gordas e brancas, nem os desenhos dos meninos, nem o sorriso da moça que acarinha os seus cabelos. Ver é sofrimento. Desejo de mais. E ele não quer, não pode. 
 
São os olhos dele que me mordem os sentidos. Até ontem, opacos, apáticos, tão cheios de renúncia. Hoje, dois buracos fundos de onde escorre o sangue ainda vivo que ele limpa com saliva. Dizem que furou com um lápis de cor. Para desenhar um sol por dentro.
 
Ele agora quase sorri. Eu sigo adiante. Com os meus olhos culpados
 
Cinthia Kriemler
 
Retirado de Samizdat

publicado às 21:44

Deus bom, deus mau, que deus?

por Jorge Soares, em 11.06.14

Solidão

 

"Deus existe porque o homem sozinho não consegue existir. Morre. Vive um bocadinho, faz umas coisas e depois morre. Deus existe porque a Arte não é suficiente. Deus existe porque o Amor não chega. Deus existe porque o homem sozinho é pior. É mais mau. É mais triste. É mais só."

 

Miguel Esteves Cardoso

 

 

Na semana passada por motivos de uma pequena cirurgia a uma vista, passei 24 horas na oftalmologia do Hospital Garcia da Horta, a meio da manhã antes de que me levassem para o bloco, para a cama ao lado da minha chegou um homem que manhã cedo tinha tido um acidente de trabalho, um descuido e se calhar a falta de óculos de protecção, fez com que uma vareta de plástico lhe acertasse em cheio numa vista.

 

Brasileiro, com um daqueles nomes que não lembra ao diabo, não se cansava de repetir a história a cada pessoa que se acercava da cama dele:

 

 

- Estava mesmo no fim do turno, já  quase ia para casa e de repente sentiu como aquilo lhe acertava na vista, de repente ficou tudo negro, sentiu sangue e ele só pensava que agora aos 50 anos, ia ficar sem a vista, como é que isso era possível?

 

-Felizmente deus é grande e nas urgências do hospital o médico tinha-lhe dito que era grave, mas não tão grave como parecia, que com um bocado de sorte, ele ia ficar bem... graças a deus, deus tinha sido muito bom com ele e não lhe tinha tirado a vista.

 

E a história era repetida uma e outra vez, a cada doente, enfermeira ou auxiliar que por ali passava... eu fui ouvindo em silêncio e só me apetecia perguntar ao homem, se deus era assim tão bom para ele, porque raios é que tinha permitido que a vareta lhe acertasse na vista, não era muito mais simples ter arranjado modo de  que nada daquilo acontecesse e ter-lhe poupado a ele o sofrimento e ao médico o trabalho de lhe estar a reconstruir uma parte do olho?

 

Finalmente levaram-me para o bloco, quando acordei a meio da tarde também já o tinham operado a ele, com anestesia local, imagino o que o pobre homem terá passado. Felizmente para ele os médicos fizeram um excelente trabalho e conseguiram resolver todas as desgraças que ele tinha sofrido naquela vista.

 

O tempo ia passando e ele ia contando a história agora também via telemóvel, estava feliz porque lhe garantiam que ia ficar bem, graças deus os médicos tinham-lhe conseguido salvar a vista... porque deus era grande e tinha-lhe salvo a vista. Das primeiras pessoas para quem ligou foi para o pastor da igreja, a pedir para fazer uma oração a agradecer que ele estava bem.

 

Não sei se era da anestesia pela que eu tinha passado ou do incómodo da vista operada, mas aquilo já me estava a irritar, o homem não se calava.

 

Chegou a hora das visitas, e com ela a pastora da igreja dele, com roupa, o carregador do telemóvel para ele poder continuar a contar ao mundo como deus é bom e lhe salvou a vista, comida e outras coisas pessoais. Depois chegaram mais pessoas, todas da igreja evangélica... 

 

Dei por mim a pensar que não fosse a igreja e ele não tinha visitas, nem quem lhe viesse trazer as coisas, nem quem o viesse buscar quando tivesse alta.... Um dos amigos que o vieram visitar disse isso mesmo, tinha estado 22 dias num hospital e não teve nem uma visita.. e foi lá, nesse hospital, que ele se virou para deus.

 

A solidão é algo terrível, não me parece que deus tenha tido nada que ver nem com o acidente nem com a cura. Se calhar se estivesse menos cansado depois de trabalhar a madrugada toda e usasse equipamento de protecção adequado, aquilo não tinha acontecido. Quanto à cura, sorte e bons médicos fazem milagres todos os dias.

 

Podemos pensar se deus é bom porque ele não perdeu uma vista, ou que é mau porque permitiu que aquilo acontecesse, mas não deixa de ser verdade que para ele e para muita gente que vive completamente só, a igreja, pelo menos a igreja dele, não deixa de ser uma coisa muito boa.

 

Já o disse aqui mais que uma vez, deus só existe porque falhamos como seres humanos, felizmente ainda há quem, como aquela pastora e aqueles amigos dele,  se agarre a deus para fazer o bem.

 

Dito isto, deus não existe, ponto final

 

Jorge Soares

 

PS: Não tem nada a ver, mas fui muito bem tratado pelo pessoal da oftalmologia do Hospital Garcia da Horta, simpáticos e atenciosos quanto baste e extremamente profissionais.

publicado às 22:20

Conto - Porto Solidão

por Jorge Soares, em 12.04.14

 

 

Eu tenho essa dor funda e molhada, espalhada, ardida, gelada. Que a gente quando fica muito tempo no mar se destempera. Encaranga, mesmo. E eu não sei viver noutro lugar nem doutro jeito. Até sou homem de chão, de areia batida, mas bem antes de raiar sol já arremanguei as calça e empurrei o caíco pra dentro da lagoa atrás de camarão. Todos dia é assim. Tenho uns companheiro de arrasto, é verdade, mas é solito que gosto de ir. Pro mar. Fico sozinho, organizando as ideia, até sentir falta da mulher, da comida da mulher, da cama com a mulher. É bom. É difícil, mas é bom. A gente vai levando a vida. Ou ia.

 

Faz um tempo, que eu nem sei dizer quanto, que eu ando na volta. Repito tudo, tudinho mesmo, e me acho aqui, parado, descendo do trapiche, tentando chegar em casa, uma saudade medonha. Não sei que acontece, quando a mulher me vê grita que nem condenada, parece que viu assombração. Diz que é impossível, impossível, que não aguenta o meu fedor, que a virgemaria me leve pro céu, que eu descanse em paz. Não minto, esse berreiro me dá uma gastura. Eu consigo chegar bem pertinho da patroa, quase toco os ombro dela, e então ela se sacode de chorar me mandando embora em nome de Deus. Aí, eu sinto uma tontura e quando me dou conta tô de novo deitado de bruço, emborcado no meio do junco, o vento fazendo bater água na minhas costa.

 

Então, vem alguém de caíco e me desvira no remo, assobia – um curto e dois comprido - para avisar que me achou. O céu por cima é cinza, fumaça, cor da minha alma inchada de tanto molho. Levam o meu corpo para velar, para enterrar, para terminar comigo. Bem rápido para a patroa não me ver assim. Mas eu não sigo. Nem esqueço. Tem muita vida pra viver, peixe pra pescar, a cara do meu filho pra ver, a mulher tá barriguda quase parindo. Preciso ficar. Tento vê ela mais um pouco. Ela me corre. Fico sentado no trapiche de madrugada pensando que acertaram direitinho no nome desse porto: Solidão. Já sei o que isso é. Se não pisasse tanto o peito até que era bonito, as estrela, o vento no nariz, os lampião aceso, ficar sozinho vendo a vida passar sem fazer barulho.

 

E quieto eu me recordo, uma lembrança dentro da outra, que naquela manhã cedinho a mulher me puxava da camisa aberta e pedia chorosa pra eu ficar, que ela tinha sonhado coisa ruim. Na minha frente já iam os outros cinco, pegando as rede, não quero me atrasar. Beijo ela e peço que me espere com tainha ensopada, não vou me demorar. Só que me enganei. Feio. Umas parte do que teve mesqueci, ficou perdida da memória, acho. Teve uma briga, uns vagabundo querendo se criar, meio que lebrinava, era difícil de ver. Me derrubaram com um soco no cucuruto. Não deu pé. Afundei. Sumi. E pronto. Agora fico fazendo esforço de voltar pra minhas coisa, contar do que foi, sarar dessa ferida descascada, mesquentar. Quase dá. Quase. Daí a mulher foge, agoniada, que não pode com o barrigão e os olho branco que fiquei, que assim não me quer mais. E eu volto de onde parei: descendo do trapiche... 

 

Andreia Pires

 

Retirado de Samizdat

publicado às 20:59

Conto - Saudade

por Jorge Soares, em 30.11.13

Saudade


Era triste aquela minha vizinha do 202. Tudo nela era triste. Seu andar, seus gestos, até suas roupas eram tristes. Só não lhe via os olhos, sempre baixos. De comum comigo, talvez a mesma idade e o fato de morar sozinha. Assim eu imaginava, porque não percebia movimento em seu apartamento. Eu vivia sozinha por opção. Escrevia o dia inteiro. Só parava para tomar banho ou comer alguma coisa, pouca, que não sou de comer muito. Minha vida, trágica, merecia um livro. Tão dedicada estava nesse projeto, que não tinha tempo sequer para me olhar no espelho. Fazia meses que não o usava. Mal saía às ruas. A não ser, bem cedinho, para comprar pão. Foi assim que conheci aquela mulher tão sombria.


Coincidentemente, saíamos à mesma hora. Como eu, ela parecia não gostar de elevador. Descíamos as escadas, caminhávamos até a padaria, voltávamos e subíamos as escadas, sempre juntas e mudas, apenas ligeiros acenos de cabeças. Nessas idas e vindas, bem queria puxar conversa, mas faltava-me coragem. Tanta melancolia me inibia. Aquela mulher não me saía da cabeça. Por que tão triste? O que teria acontecido em sua vida?... Matutava, curiosidade despertada.


Uma vez ousei, toquei sua campainha, com um pedaço de bolo que acabara de assar. Nem era de assar bolos, mas precisava de um pretexto para me aproximar. Abriu a porta, sorriu aquele sorriso triste, olhos baixos. Meio sem jeito, ofereci-lhe o prato e perguntei-lhe o nome.


“Saudade” – disse, num fio de voz.


Recusou gentilmente, não comia doces, agradeceu-me e fechou a porta. Voltei para o computador, pasma. Saudade?! Isso lá é nome?!...  Curiosidade aguçada. Não conhecia ninguém naquele prédio, antissocial que sou, reconheço. Meus vizinhos também não eram muito melhores. Nas raríssimas vezes em que cruzei com alguns deles, passavam cabisbaixos, me olhando de soslaio – e, para ser sincera, achava bom. Cada um na sua. Só que agora me deparava com um dilema. A quem perguntar sobre a vizinha? Saudade...


Bem, a solução poderia ser a reunião de condomínio que aconteceria dali a três dias. Nunca comparecera a nenhuma, verdadeiro pavor que tinha de reuniões, principalmente as de condomínio. Na próxima iria, decidi. Lá, daria um jeito de saber mais sobre Saudade. Chegado o dia, compareci, atrasada é fato, mas compareci. Vencendo o pânico, atravessei o saguão sob olhares curiosos, dando uma geral, mas Saudade não estava lá. Vai ver tínhamos mais este ponto em comum, não gostar de reuniões de condomínio. Não dei qualquer opinião que, aliás, ninguém me pediu, nem prestei atenção no que falavam. Só esperava uma brecha para perguntar se alguém conhecia a vizinha do 202, não diria o nome, claro, para respeitá-la. Diria que estava preocupada porque não a via fazia tempo, morava sozinha, coisas assim.


Na primeira oportunidade, perguntei, olhando para todos e para ninguém especificamente. “Mas aquele apartamento está vazio faz mais de ano!” – exclamaram. Pairou no ar um silêncio pesado. Olhavam-me assustados, e eu me senti desestruturar. Sai dali abruptamente e tão descontrolada que, pela primeira vez desde que morava lá, entrei naquele elevador, parado no térreo com a porta aberta. Foi então que me vi, refletida no revestimento de espelho. E era Saudade quem me devolvia o olhar desamparado, alucinado, insano...


Cecília


Retirado de Samizdat

publicado às 17:59

Conto - Breu

por Jorge Soares, em 16.11.13
Breu

Estou aqui. São minhas estas narinas que se dilatam, estas pupilas que mordem a escuridão. Meus estes passos indecisos e os tropeços que infligem sons de estouro à madeira do assoalho. Estou aqui. Com medo de cair no chão de tábuas. Esticando os braços para afastar o nada, esse medo maior. Dissolvida no breu. 

Mas como há de ser que seja eu?

Eu estou aí fora, nessa mesa farta. Ocupando a boca com qualquer entulho. Com a comida que empurra silêncios para dentro. Com o vinho que abranda as bochechas enrijecidas pela falta do riso. Sim, sou eu mesma aí sentada. Reconheço os anéis, os brincos, o vestido de verão. E ainda assim, ainda assim... Como há de ser que seja eu? 

Parece-se comigo. Apenas isso. Os traços, os gestos; os cabelos presos no alto. Olhos que nunca se afastam porque não sabem voltar. Semelhanças. Mas não sou eu. Eu estou aqui. Disforme, repleta de invisível. Mas aqui. 

Essa que está aí brilha. E eu já me livrei da luz. Quebrei as lâmpadas com o cabo da vassoura. Senti nas solas dos pés os cacos finos que arrancaram sangue, que arrancaram lágrimas, que aleijaram a caminhada. Escondi as lamparinas. Joguei no tanque o querosene. E descartei pela janela os fósforos, fetos abortados. Virei ausência. 

Eu estou aqui. Vendo nos seus olhos medrosos que ainda há reflexos de luz. Gestando a hora em que se apagarão e se aceitarão noite opaca. Então, você não estará mais aí, doendo em mim como cicatriz aberta. E seremos, enfim, apenas eu neste breu que me toca.

Cinthia Kriemler
Retirado de Samizdat

publicado às 21:36

Esquecida

por Jorge Soares, em 05.08.13

esquecida

 

 Imagem minha do Momentos e Olhares

 

 

Bem melhor sozinho do que com tolos.

La Fontaine 


Jardim do Bonfim

setúbal, Outubro de 2012

Jorge Soares

publicado às 17:46

Saudade é solidão acompanhada

por Jorge Soares, em 26.03.13

A solidão

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

Saudade é solidão acompanhada, é quando o amor ainda não foi embora,  mas o amado já...

Pablo Neruda

 

Jardim do Bonfim, setúbal

Março de 2012

Jorge Soares

publicado às 17:16

Conto - Sob os escombros

por Jorge Soares, em 17.11.12
Sob os escombros

Lembrança é vida soterrada.Escondida sob escombros fundos, onde a dor se acomoda em letargia e desistência por um tempo longo demais, curto demais.

Conveniência? Ou seria medo o que nos faz insistir no esquecimento?Sofrer é hábito descuidado. E a gente nem percebe há quanto tempo não sente alegria. Ou paixão. Ou vontade. Ou qualquer coisa que aqueça o coração. Segundos, anos... Quanto tempo se leva sendo triste? 

Tornar-se infeliz é bordado lento. É como poeira nas roupas, que se assenta em camadas finas, toldando o viço, deturpando os fios da trama. 
Ser triste leva uma vida. A vida que depois a gente esconde na memória. E pensa que esqueceu.
Um fim de tarde magnífico se debruçava sobre o mar de ondas soluçadas. Na areia, um pedaço de jornal que dançava sob a regência da brisa chamou a atenção de Salvatore, exumando memórias inesperadas e dolorosas. Apanhando a folha bailarina enroscada em seus pés, olhou em volta, procurando o passado.
Inês corria pela praia atrás do jornal que lhe fugira das mãos. Segurando o chapéu para que não voasse como as folhas, pareceu a Salvatore, num primeiro e divertido olhar, que tentava arrancar a própria cabeça.
–– Melhor voarem as notícias do que o cérebro! — caçoou ele.
–– Como? –– interpelou-o a moça, séria.
–– Deixe que eu pego o fujão –– disse ele, prosseguindo com a troça.
–– Agradeço, mas dou conta sozinha! –– respondeu a jovem, altiva.
Mas antes que um ou outro alcançasse o jornal, o papel fujão decidiu por vontade própria ir parar aos pés de Salvatore.  
–– Agora, não se pode negar: ele gosta de mim –– provocou-a, bem humorado.
Cedendo ao sorriso sedutor daquele homem charmoso, Inês aproximou-se dele, aderindo à brincadeira.
–– Ingrato! Eu o compro, eu lhe faço companhia e ele me abandona assim, pelo primeiro estranho!
–– Onde está o estranho? Vamos, diga-me onde está que eu o ponho daqui para correr! –— disse ele, fingindo procurar ao redor algum intruso.
Em seguida, estendeu a mão forte e apresentou-se a ela:
— Salvatore Rossetti.
–– Inês Santana –– respondeu ela.
As mãos de Maria Inês eram conchas quentes e macias, e o sorriso fez com que ele prestasse a atenção aos dentes benfeitos. Achou-a tão linda que, ainda no cumprimento, sentiu-se tomado por um abobamento incontrolável. Tentou recompor-se, mas era tarde demais. Inês tomou-lhe a vida naquele mesmo instante.
A diferença de idade entre os dois era de dez anos. O que não seria muito, não fosse a vida desregrada que Salvatore levara até conhecê-la, que o tinha transformado em um cínico, um mundano. Sentia-se velho. E tinha medo de magoá-la. No entanto, ali, à beira-mar, Inês se tornou um cais. E ele foi deixando, aos poucos, de ter medo. Do tédio que lhe tomaria os sentimentos quando cessasse o êxtase. De outras carnes que lhe atrairiam o desejo quando findasse nas dela o frescor da mocidade. Da irritação que sentiria, numa manhã de domingo, quando um “por favor”, um “me ajude” o desconcentrasse da escrita dos textos. Esqueceu-se apenas de ter medo de que ela deixasse de amá-lo quando ele voltasse a ser o homem que o habitava antes.
Inês, contudo, o surpreendeu. Cedeu e impôs-se a seus caprichos em igual medida. Agradou-o com carícias; respeitou-o com silêncios. Ela o fez feliz. Como ele nunca tinha sido. Como jamais seria. Mas ele se cansou de ser feliz. Enjoou-se das manhãs, das tardes e das noites perfeitas. Aborreceu-se com a repetição das horas. Desprezou o amor maduro que ela lhe oferecia. E só descobriu que era inverno quando viu a neve em seus próprios cabelos.
Quando partiu, não se voltou uma só vez para saber da tristeza de Inês. Não se despediu dos quadros que acenavam suas tintas enfraquecidas pelos anos, nem revidou ao relógio que marcava “É tarde!”.
Memória é vento que se encolhe com frio de si mesmo; tormenta que se guarda para um próximo açoite. É linha que costura na alma, em ponto miúdo, todos os choros, todas as belezas, toda a rebeldia. E repousa, e repousa, e então desperta. Esparrama-se em rajadas. Como um pulmão que expele. Para não sufocar.
A lua fazia desenhos na água. A brisa assediava Salvatore, despenteando-lhe os cabelos ainda fartos. Ele não queria ir embora. Não de novo. Tudo doía, mas ele gostava da dor. Não sentia remorso pelos anos de liberdade e de excessos, e enfrentava o aperto no peito sem sobressaltar-se. Mas a falta das memórias o atormentava. As memórias de Inês. E a certeza de que, sem elas, não haveria consolo a acompanhar-lhe a velhice.
Precisava vasculhar os escombros daquela casa em ruínas e ouvir o murmúrio dos destroços. Até encontrar as lembranças. Seguiria o sorriso de Inês, deixaria que o rastro da vida soterrada lhe indicasse o caminho. Não descansaria. Não permitiria que a solidão o encontrasse distraído, para que se apossasse do que lhe restava a respirar.
–– Salvatore –– escutou, então, a voz tranquila.
Fechou os olhos e entregou-se ao arrepio que o sacudiu por inteiro. Depois, sentiu que Inês o puxava pela mão e deixou que os seus pés a seguissem. Abriu os olhos para reencontrar os quadros em suas cores vívidas, e olhou para o relógio que marcava “Enfim!”.
A gente pensa que esqueceu. A gente acredita que acabou. Então, a vida se levanta das ruínas. Sussurra. Alcança-nos. E tudo está lá, intacto. Para nos levar além.

Cinthia Kriemler


Retirado de Samizdat

publicado às 22:53

Morrer de solidão

por Jorge Soares, em 29.01.12

Em Portugal morre-se de solidão

Imagem minha do Momentos e Olhares

 

É uma notícia que é recorrente, foi  em Fevereiro de 2010 que escrevi o Post, Em Portugal há quem morra de solidão, na altura tinham sido encontradas mortas 9 pessoas que viviam sós, passaram dois anos e o que constatamos é que nada mudou, hoje a noticia fala de 10 idosos encontrados mortos em apenas seis dias..

 

Vivemos tempos estranhos, nunca como agora as pessoas estiveram tão próximas umas das outras, por muito grande que seja a distancia física, nunca foi tão fácil comunicarmo-nos com quem está longe, as redes sociais acercaram-nos das pessoas e do mundo. A grande maioria de nós comunica todos os dias com dezenas, centenas e até milhares de estranhos... o messenger, o Facebook, os blogs.... colocam-nos à distância de um clik de milhares de pessoas... e, também falo por mim, quantas vezes falamos com as pessoas mais próximas de nós?

 

Acredito que muitas vezes as pessoas estejam sós porque foi isso que escolheram para as suas vidas, mas o facto de escolherem estar sós não deveria significar que tenham que estar esquecidas...  e o que vemos é que há muita gente esquecida... esquecida pelos seus, esquecida por quem está à volta..esquecida pelo mundo. Parece que quando alguém deixa de ser produtivo, passa a ser dispensável, peso morto para o mundo.

 

Quando ouço noticias destas o primeiro que penso é "onde anda a família destas pessoas?", acredito que um ou outro não a tenha, mas são centenas, milhares de pessoas sós, a maioria terá filhos, netos, irmãos... alguma vez teve amigos, ninguém vive uma vida inteira na solidão, de uma ou outra forma terá deixado a sua marca no mundo, porquê terminam assim?, abandonados por todos?

 

Acredito sinceramente que o estado podia fazer algo mais para evitar que estas coisas aconteçam... mas este é um daqueles casos em que não acho que seja o estado a falhar... quem falha somos todos nós, falhamos como seres humanos e como sociedade.

 

Pense lá, quando foi a última vez que falou com os seus?.. não haverá alguém que até sabemos que está só e a quem poderíamos dar uma palavra de conforto?

 

«Morrer é só não ser visto.»

 

A morte é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto.

Se escuto, eu te oiço a passada

Existir como eu existo.

 

A terra é feita de céu.

A mentira não tem ninho.

Nunca ninguém se perdeu.

Tudo é verdade e caminho.

 

Fernando Pessoa

 

Jorge Soares

 

publicado às 20:08


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