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Porque: "A vida é feita de pequenos nadas" -Sergio Godinho - e "Viver é uma das coisas mais difíceis do mundo, a maioria das pessoas limita-se a existir!"
Imagem Minha do Momentos e Olhares
Procuro-te
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.
Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas"
Praia de Albarquel
Setúbal
Junho de 2010
Jorge Soares
Imagem retirada da internet
Nos olhos dela habitava a bondade. Um doce sorriso embalava-lhe os lábios, e a face transparecia a tranquilidade interior de quem não fora punida pelo despeito nem agredida pelo ressentimento. Era ainda nova: vivia na linha de sombra que tenuemente divide a idade das pessoas, entre maduras e velhas. De onde viera? Que idade tinha? Ninguém sabia. Por vezes, pintava os lábios murchos. Por vezes, exibia largos decotes e mangas cavadas, eis o traço lascivo dos seios, eis os braços roliços, opulentos e sensuais. Era alta, quase imponente; porém, quando subia a rua íngreme, parecia alada, os pés quase não tocavam no chão.
Aparecera no bairro e logo se organizara uma aura de mistério em sua volta. Apesar da estatura, mantinha-se discreta e reservada, pouco falava com os vizinhos. Havia dias em que cantava; cantava alto velhas canções de amor. Nas tardes de sábado, os homens reuniam-se no clube, jogavam ao loto e à sueca e, ocasionalmente, embebedavam-se.
Ela residia num pequeno apartamento, mesmo por cima do clube. Gostava de se colocar à varanda, e os homens fitavam-na, gulosos, ávidos e sôfregos. Fingia não os ver. As mulheres remoíam raivas e amuos. Ela observava o horizonte, lá, onde o Tejo forma uma laçada, e permanecia assim: abstracta, atenta e exposta. Mas gostava que a apreciassem, e divertia-se com o ciúme das outras. Às vezes dançava ao som de uma pequena telefonia. Dançava como se estivesse a dançar com o mundo, ou, quem sabe?, a pensar em alguém que amara.
As geografias sentimentais são mais ou menos favoráveis: o bairro era bom e valia tudo o que de ele se dissesse; o resto era mau, e tudo o que de pior se dissesse nunca seria excessivo. Começaram as intrigas, as suposições pérfidas, as calúnias evasivas. Não lhe perdoavam a beleza, a dignidade da postura, a pequena viração de altivez que dela se desprendia.
Suspeitaram de tudo: que era prostituta, que vivia às custas de um proprietário de imóveis, que fazia números de nu em cabarés rascas. Chegou-lhe aos ouvidos a natureza insidiosa desses boatos. Não lhes atribuiu a menor importância, o que ainda mais arreliou as outras.
Saía de casa logo pela manhã, regressava tarde, ocasionalmente ausentava-se pela noite. Acumulavam-se as suspeições. Até que, certo dia, deixou de aparecer. O falatório aumentou. Coisas medonhas foram ditas, como se de verdades se tratassem. Correu o tempo; uma semana passou, outra, e outra ainda. Para onde fora? Que seria feito dela? E se ele não regressasse, não pudesse regressar ou não quisesse regressar?
Depois, houve quem a visse. Era numa tarde em que a chuva, lamentosa, caía forte. Desapareceu no cotovelo da rua, quem a viu acelerou o passo para descortinar aonde ela ia. Entrou num prédio alto e antigo, de azulejos, e ao perseguidor assaltou a ideia de que a vizinha misteriosa talvez fosse mulher-a-dias. Este indivíduo tivera, em tempos, a veleidade de se relacionar com ela; porém, fora rejeitado com uma frase breve e ríspida. Era o ressentimento que o incitara àquela infausta perseguição.
Horas e horas decorreram. A chuva deixara de cair, o homem encostara-se a uma árvore, sem abandonar a vigilância ao prédio. Até que, finalmente, ela reapareceu. Olhou em derredor e, rapidamente, aproximou-se da árvore onde o outro se ocultava. Atrapalhou-se, o homem. E ela disse:
— Quer saber o que eu faço, não é?
— Bom…bom — Não sabia o que responder.
— Olhe: vendo ternura.
E desandou. Agora, uma brisa mansa, um vento acariciador, um pio de ave, e o silêncio. Era assim: todos os dias, ou quase, ela visitava casas de gente idosa, e recebia escassos euros para lhes ler jornais, revistas ou livros de histórias cordatas com finais felizes. Simplesmente um pouco de ternura.
Voltou à rua para se despedir da rua e ignorar as pessoas. As pessoas juntaram-se, viram-na subir o calçadão, puxar pelas pernas para escalar a escadaria enorme. Durante algum tempo pensaram nela. Nunca ninguém soube o seu nome, nem se foi feliz na vida.
Anos depois, um modesto cronista contou-a numa crónica humilde.
Conto de Batista Bastos, retirado de Releituras