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Num daqueles dias

por Jorge Soares, em 16.11.16

Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.

 

Fernando Pessoa

 

publicado às 14:35

Conto - As seis notas

por Jorge Soares, em 11.06.16

vaidade_de_menina_pobre.jpg

 

 

Não sabia o que vestir, então deixou que sua mãe a ajudasse. Reviraram as roupas do velho baú até encontrarem algo apropriado para a ocasião daquela tarde: um velho vestido de tafetá, mas de um azul bonito e lustroso.

 

— Teu pai ficava doido quando me via socada nesse aqui. Eu faço um arranjo ligeiro e tu vai entrar nele como se tivesse sido feito pra tu — diz a mãe, visivelmente orgulhosa.

 

— Anda, Veralda, avia! Vai te assear que eu vou dar uns ponto no vestido, depois a gente pinta a tua cara pra te livrar dessa cor de cera, minha filha.

 

Coordena os serviços, a mãe. Tem ela o pé nu e de unhas feias posto sobre o pedal da máquina de costura. Uma mão acaricia o tecido que fede à barata enquanto a outra busca por tesoura e linha.

 

Veralda apressa-se em não decepcioná-la e corre até a cozinha, onde apanha sobre o jirau um pedaço de sabão de coco e uma toalha. Caminha aos pulinhos até o banheiro improvisado com palhas de carnaúba, posto estrategicamente ao lado da cacimba. A água fresca banha seu corpo e Veralda se esquece do calor e das obrigações, pensa nas belas bonecas que ganhará e esfrega a cara com força, como se quisesse se tornar outra. Experimenta o cheiro bom do sabão e lambe sua espuma. Não parece coco.

 

Quer estender o banho, mas seus braços finos não aguentam puxar mais que três baldes. A aspereza da toalha quase fere sua pele marcada pelas surras e quedas do cajueiro.

 

— Mãe, bota mais — suplica Veralda diante do espelho, ao ver seu rosto, pela primeira vez, maquiado. — Eu tô bonita, num tô? — Pergunta a filha.

 

A mãe responde com um muxoxo e se ocupa em desembaraçar os cabelos cheios de piolhos e carrapichos.

 

— Nem teus irmão homem tem uma cabeça sebosa como a tua, cunhã. E para de se bulir senão eu te dou um cascudo, desinfeliz — repreende a mãe.

 

Mas Veralda nada escuta. Mira-se no espelho e sonha em ser a princesa que um dia vira em uma revista que sua irmã mais velha trouxera de Fortaleza. Jamais fora à capital do estado. Nem ela, nem seus pais ou seus outros irmãos. Pareciam todos condenados a morrer ali, entre Brejo Santo e São José do Belmonte. Mas, a sorte de Veralda estava fadada a mudar ainda naquela tarde. Teria um quarto só seu e dois bambolês, um amarelo e outro azul. Seria mais rica que qualquer menina.  

 

— É essa aqui? — pergunta o estranho, de aspecto repugnante.

 

O homem segura a menina por um dos braços e verifica atrás das orelhas, também dentro da pequenina boca. Talvez procure por feridas, como faria o comprador de um animal.

 

— É essa aí sim, é bonita, num é? — cintilam os olhos da mulher, orgulhosa por ser boa parideira.

 

— Essa menina tem mesmo só onze ano? Seu Dosinho só gosta das novinha. A sua cabrocha aqui parece mais velha. — desconfia da mercadoria, o atravessador. Sabia o que lhe aguardava caso pagasse mais caro por algo que não valesse cada centavo.

 

— Tem mais de onze não, Juarez. É que essa aí come demais. Ou me livro dela ou não crio as outras três pra ficarem assim, vistosa que nem ela. E tá aqui a certidão de nascimento — apresenta a mãe o papel carcomido, o que abona sua retidão em transações comerciais. — Se quiser, pode levar pro Seu Dosinho em pessoa conferir o documento.

 

Após guardar o papel no bolso de sua calça brim encardida, o homem retira a carteira — cuidadosamente posta entre o cós da calça e seu púbis — e sorri para Veralda.

 

— O acertado foi seiscentos reais, num foi, Dona Verbênia? Pois tá aqui cada centavo, a senhora já tinha visto uma nota de cem? É bonita, num é?

 

A mulher acaricia cada uma das cédulas, enquanto seu cliente traz para junto de si o resultado de sua compra.

 

— Deseje felicidade pro Seu Dosinho, viu, Juarez. E Diga pro Sargento Cardoso que Valfredo não vai poder ir no sábado porque ainda tá cum dor. Mas mando o Valter no lugar dele e faço um abatimento.

 

A mulher ri satisfeita ao sentir as seis notas de cem reais roçarem-lhe o mamilo rijo. Molha-as de leite.

 

— Mãe, eu não quero ir — diz a menina ao libertar-se das mãos de seu comprador e correr até sua cachorra. Abraça a cadela prenha como quem procura o carinho de uma boa amiga. — Eu quero ver os cachorrinho da Pidoga nascer. Depois que ela parir, a senhora pode me mandar pro Seu Dosinho.

 

Nervosa, a cachorra balança o rabo. Seus olhinhos castanhos molhados pelo choro da menina que ama, ficam apertados. Se soubesse o que se passa, morderia esses dois infelizes que as separarão para sempre, Veralda e ela, e que também se livrarão de seus filhotes antes mesmo que eles desmamem.

 

A mãe, extremamente constrangida, toma a filha para si. Paciente, como só as mães sabem ser, seus olhos reluzem enquanto ela diz:

 

— Deixe de besteira, Veralda. Vá logo com o Juarez. Pra que tu quer ver os filhote da Pidoga? Que serventia tem isso? Se preocupa em fazer logo um teu, pensa direito, ou tu num é minha filha?

 

Muito séria, Veralda para de chorar e entrega sua mão a de Juarez.

 

— Eu preferia ser filha da Pidoga — diz, vingada, antes de partir.

 

 

Emerson Braga

 

Retirado de Samizdat

publicado às 21:13

save the children.jpg

 

Imagem da Internet 

 

O vídeo pretende mostrar como seria a história de Lily, uma jovem britânica, num mundo em que a Inglaterra está em guerra e ela tem que fugir para a Alemanha

 

Numa  Londres em guerra e sem recursos, tem que enfrentar homens armados e predadores sexuais, chega um momento em que decide fugir, nessa fuga atravessa parte do continente europeu viajando das mais variadas formas e passando por campos de refugiados.

 

A história criada pela organização Save the Children dos Estados Unidos,  é evidentemente ficcionada, mas foi baseada em casos reais relatados por vários  refugiados Sirios.

 

A Save the children é uma organização americana que presta ajuda a crianças e famílias de refugiados na Síria e na Europa.

 

Para ver e reflectir.

Jorge Soares

 

publicado às 14:47

cartadiego.jpg

 Imagem de aqui

 

Diego tinha  11 anos, deixou um recado junto à varanda da que se atirou ao vazio, "Vão ver no Lucho". Lucho era o seu boneco preferido, nela estava guardada a seguinte carta de despedida:

 

"Pai, mãe, estes 11 anos que estive convosco foram muito bons e eu nunca vos vou esquecer.

 

Pai, tu ensinaste-me a ser uma boa pessoa e a cumprir o prometido, além disso, brincaste muito comigo.

 

Mãe, tu protegeste-me muito e levaste-me a muitos sítios.

 

Os dois são incríveis e juntos são os melhores pais do mundo

Tata, tu aguentaste muitas coisas por mim e o meu pai, estou-te muito agradecido e gosto muito de ti.

 

Avô, tu sempre foste generoso comigo e sempre te preocupaste. Gosto muito de ti.

 

Lolo, tu ajudaste-me muito com os trabalhos de casa e trataste-me bem. Desejo-te muita sorte para que possas ver a Eli.

 

Digo-vos isto porque não aguento mais ir ao colégio e não há outra maneira de deixar de ir. Por favor espero que algum dia possam odiar-me menos.

 

Peço à mãe e ao pai que não se separem, eu só serei feliz se estiverem juntos.

 

Vou sentir saudades vossas e espero que algum dia nos encontremos no céu. Bem, despeço-me para sempre

 

Assinado, Diego.. outra coisa, Tata, espero que encontre trabalho rapidamente.

 

Diego González"

 

Diego atirou-se do quinto andar em Outubro passado, a noticia surgiu agora porque apesar da carta não há justiça nem culpados pelo que sucedeu. Tal como tantas vezes acontece nestes casos, a escola e a sociedade em geral negam-se a aceitar as evidências, procuram-se outras respostas, outras causas, ninguém quer pôr o dedo na ferida e atacar o verdadeiro problema.

 

Para mim que tenho filhos é dificil ler esta carta e aceitar que estas coisas possam acontecer, todos lamentamos a morte do Diego e de todos os outros Diegos que há por aí, mas a verdade é que pouco ou nada fazemos para proteger as nossas crianças do medo e dos abusos.... 

 

O que aconteceu ao Diego tem um nome, chama-se Bullying e enquanto não fizermos nada, todos: pais, escola, sociedade somos culpados, porque todos tinhamos obrigação de proteger Diego e ninguém fez nada.

 

Jorge Soares

publicado às 21:32

Deus não existe, ponto final!

por Jorge Soares, em 10.12.15

solidao.jpg

Imagem retirada da internet

 

O post de ontem deu muito que falar, pelos vistos um ateu é capaz de chatear muita gente (tanta intolerância) e gerar muitas  opiniões, já que estamos numa de recordações, o texto seguinte é de 11 de Dezembro de 2008 (aqui).

 

A propósito do post sobre o natal que escrevi há dois dias, recebi o seguinte comentário por email:

 

 "Espertinho o menino!...  "como é o vosso natal, falem-me do vosso natal..." ;-)) Ora nega lá que o que esperas mesmo é ver aí a malta  a dissertar sobre o primeiro parágrafo..."

 

O primeiro parágrafo falava sobre o facto de eu ser ateu e de "deus não existe, ponto final". A minha amiga Linda achou que o resto do post era para encher e que o verdadeiro motivo era este... pois não, a minha ideia era tentar perceber os sentimentos das pessoas sobre o natal... aquele parágrafo era só para explicar o contexto do meu sentimento sobre o natal.

 

Mas ela dizia mais, dizia o seguinte:

 

"Sabes que eu acho um nadinha pretensioso esse teu jeito de afirmar; "sou ateu, Deus não existe e ponto final"

Na minha modesta opinião, alguém que como tu, perentóriamente, se afirme assim, tem de provar que Deus não existe."

 

Qualquer tentativa de demonstração da existência ou não de deus é tempo perdido, porque algures vai esbarrar no "É uma questão de fé"... e isso é algo que não tem discussão. Sou sincero, eu não consigo perceber qualquer argumento que comece ou termine em, "é uma questão de fé", e portanto resta-me um só caminho, deus não existe, ponto final.

 

Fui batizado e educado na religião católica, catequese e comunhão solene incluida. Um dia dei por mim a pensar que aquilo não fazia sentido, primeiro deixou de fazer sentido tudo o que dizia respeito à igreja, a católica ou qualquer outra, aquele deus capaz de perdoar e de castigar, Jesus, a virgem, os santos, a criação, o pecado, nada fazia sentido. Com o tempo o próprio conceito de deus deixou de fazer sentido.

 

Dei por mim a pensar que as pessoas precisam de um deus porque se sentem sós, porque não conseguem encontrar carinho e apoio em quem os rodeia. O conceito de deus existe porque falhamos como seres humanos, porque não somos capazes de ajudar e apoiar as pessoas que estão à nossa volta. Muita gente se escuda na fé, vão à igreja, rezam, acreditam, mas não são capazes de dar um bocadinho de si para tornar mais leve e mais feliz a vida de quem os rodeia. Deus é tantas vezes a ultima esperança, porque já batemos a muitas portas e elas não se abriram, porque já apelamos a muitos sentimentos e só recebemos o vazio como resposta, ou porque já batemos tantas vezes com a cabeça na parede e não fomos capazes de aceitar a ajuda que se nos oferecia, que já não há quem seja capaz de nos ajudar.... nessa altura, deus é a resposta. Quando todas as pessoas à nossa volta nos falharam ou quando nós próprios falhamos, resta-nos a fé.

 

Devemos ter fé sim, mas é em nós, nas nossas capacidades e nas das pessoas de quem gostamos e devemos ter a humildade de suficiente para aceitar que somos simplesmente humanos e que por vezes precisamos de ajuda. A vida é dar e receber, mas é dar e receber de seres humanos como nós, não de um qualquer deus. Os primeiros humanos chamavam deus a tudo o que não conseguiam explicar, com o tempo tudo se foi explicando, agora, chamamos deus à nossa solidão.

 

Pronto, e agora podem dissertar à vontade.... sobre, deus não existe, ponto final!

 

           NATAL
"Leio o teu nome
Na página da noite:
Menino Deus...
E fico a meditar
No milagre dobrado
De ser Deus e ser menino.
Em Deus não acredito.
Mas de ti como posso duvidar?
Todos dias nascem
Meninos pobres em currais de gado.
Crianças que são ânsias alargadas
De horizontes pequenos.
Humanas alvoradas...
A divindade é o menos."
 
Miguel Torga 
(Obrigado Linda)

 

Jorge Soares

 

publicado às 22:32

O que festejam os ateus no natal?

por Jorge Soares, em 08.12.15

Natal Ateu

 

Há por aí quem não consiga entender o verdadeiro significado do natal, não, não tem nada a ver com meninos, reis magos, estrelas e manjedouras... pelo menos para mim não tem.

 

Escrevi o texto abaixo em Dezembro de 2009,,,, já choveu alguma coisa desde  essa altura, mas nada mudou...

 

Há uns anos... bem, há muitos anos, quando a internet dava os primeiros passos, a Atarraya era uma mailing list de estudantes venezuelanos no estrangeiro, um sitio onde discutíamos tudo e mais alguma coisa. Já nem sei como fui lá parar, no natal sugeri que trocássemos postais de natal, o Brito era o intelectual da lista, vivia no Japão e nunca me vou esquecer a resposta dele:

 

- Jorge, eu sou ateu e não festejo o natal, mas terei todo o gosto em enviar-te um postal para o dia dos inocentes.

 

O dia dos inocentes é o equivalente latino-americano do dia das mentiras, festeja-se a 28 de Dezembro.

 

Acho que todos sabem que sou ateu, não acredito em deus e muito menos num Jesus Cristo nascido numa manjedoura que mais tarde ressuscitou de entre os mortos. Na semana passada e em jeito de provocação, a Stilleto a propósito do meu post sobre o nosso natal, dizia que não entendia o que festejam os ateus nesta altura.

 

Não sou tão radical como o Brito, eu festejo o natal, não o natal religioso, esforço-me por não festejar o natal actual, o do consumismo, mas festejo o meu natal, o da festa da família e porque não?... O das tradições. Até porque muito antes da existência do cristianismo já por esta altura se festejava o solstício do Inverno, o renascimento da natureza que resultará de os dias começarem a ser maiores. Com o tempo a tradição foi mudando e a igreja, como em muitas outras das suas celebrações,  apropriou-se destas datas para a sua festa de natal.

 

O que festejo eu?...para mim o natal é uma festa familiar, a altura de reunir as famílias, de partilhar afectos e presentes. Para mim ser ateu não significa renegar tradições, a ceia de natal, o bacalhau com batatas, bilharacos, rabanadas, pan de jamon, bolo-rei. Troca de presentes à lareira, árvore de natal e presépio, haverá quem diga que algumas destas coisas são tradições católicas, todas estas coisas ou já existiam há 2000 anos ou tem menos de 200 anos.... tirando talvez o presépio, tudo o resto tem a ver com a família e connosco e nada que ver com a igreja.

 

Cá  em casa, e por agora,  o único ateu sou eu .. e faz parte da minha forma de estar no mundo, o respeito das crenças das pessoas que estão à minha volta... natal incluído e se há coisa que não festejo é o dia dos inocentes... nem o das mentiras.

 

Jorge Soares

 

PS: Cá em casa já não sou o único ateu.. e só não somos mais porque há quem apesar da sua inteligência e perspicácia, se recuse a falar ou sequer a pensar no assunto.

publicado às 22:34

Aquelas coisas que nos fazem acreditar no natal

por Jorge Soares, em 03.12.15

carta.jpg

 

Retirado do Facebook

 

Miguel,

 

Eu sei que tu e a tua mulher tiveram muitas dificuldades nos últimos meses desde que perderam os empregos.

Agradeço-vos terem pago sempre a renda a tempo. Eu quero oferecer-vos um presente. Não me paguem a renda do mês de Dezembro. Utilizem esse dinheiro para passarem um feliz e maravilhoso natal em família com os vossos filhos.

 

Bom dia e feliz  natal

António Silva

 

É nestas alturas que percebemos o que realmente significa o espírito do Natal.

 

Jorge Soares

 

PS: Há uma enorme probabilidade de isto ser uma campanha publicitária qualquer... mas eu prefiro acreditar no espírito do natal.

 

publicado às 21:33

Conto - Tentação

por Jorge Soares, em 24.10.15

tentação.jpg

 

 

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.

 

Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

 

 

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.

 

Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.

 

A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

 

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.

 

Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.

 

Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.

 

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú.

 

Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

 

Mas ambos eram comprometidos.

 

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

 

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.

 

Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás

 

Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

 

Retirado de Conti Outra

publicado às 21:13

Conto - Fomes

por Jorge Soares, em 17.10.15

fomes.JPG

 
A fome não é exigente: basta contentá-la, 
como, não importa. 
(Sêneca)
 
No primeiro tombo, ralou os joelhos no assoalho duro. Ganhou consolo, colo, chupeta. Viu o piso inanimado de madeira ser chamado de bobo e feio pela mãe, e receber do pai tapas insanos. Não achou graça. E chorou aos gritos, nariz escorrendo, punhos tão cerrados que arrebentou a pulseira de ouro de chapinha na qual o nome dela estava gravado em letra bordada. Esperneou, corcoveou, puxou os próprios cabelos e os da mãe, que a sujigava nos braços para que ela não caísse. Então, o pirulito. Grande, multicolorido. Entregue pelo pai como um troféu melado. E não houve mais choro ou ranger de dentes. Que gracinha! Menina linda da mamãe! Amorzinho do papai! Que belezinha!
 
Passou a infância entre doces, sorvetes, choros e elogios. Chocolates pretos, brancos, crocantes, recheados. Recebidos em momentos de dor, de aflição, de insegurança, de carência. Na adolescência, descobriu os sanduíches de dois andares, os refrigerantes, os achocolatados misturados com granulados, as casquinhas de biscoito que enfeitavam os milk-shakes e que depois passaram a ser comidas sem os milk-shakes. E como a ansiedade não passava, e como os meninos já eram ridiculamente fiéis às formas esquálidas, e como as dela eram redondas e macias como as almofadas do sofá, deixou que toda aquela fome, constante e imensa, fosse aplacada por novos sabores. Incluiu na dieta um baseado por noite e cinco dias de álcool por semana. Vodca. Retirada sem aviso do estoque do pai. A Stolichnaya era tomada em copo de plástico branco. Em casa. No quarto. Caso alguém entrasse sem bater, não daria muita atenção a um copinho descartável. Na rua, fazia vaquinha com os amigos; compravam gelo.
 
Mas a fome não passou. Não passava nunca. Além do apetite causado pela larica e pela ressaca, havia mais. E ela queria esse mais. Da primeira vez que fez sexo, sentiu-se saciada, relaxada. O banco de trás do carro era apertado para o seu corpo gordo, mas aquele aperto todo tinha excitado o parceiro. Mais atrito, mais encaixe, mais penetração, ele explicou assim que a trepada terminou. Naquela noite, ela se esqueceu do baseado e do copo de vodca, que dormiu metade cheio embaixo da cama.
 
Viciou-se naquele alívio que a fez esquecer os doces, os refrigerantes, as pizzas, o álcool. E descobriu que o que lhe dava mais prazer no sexo era enfiar na boca o membro ainda mole e senti-lo crescer ao comando da sua língua nervosa. Em pouco tempo, ganhou fama de ser a melhor na prática do sexo oral. Ela diria pênis e boquete, mas ainda não estava pronta para essas palavras tão íntimas.
 
Namorados, amantes, ficantes. Ela escolhia. Marcava e desmarcava dia e hora. E decidia quanto tempo duravam. Desejava, implicava, atraía, rejeitava. Passou a trocar o almoço por transa. O jantar, os lanches de fim de semana. Trocou de idade várias vezes, virou mulher. Gostosa, safada, experiente, esperta. Magra na medida certa. Cheia nos lugares certos. Até que cismou que precisava entender aquela fome maior do que ela. Procurou psicólogo, padre, benzedeira, astrólogo. Comprou livros que falavam de obsessão, de compulsão, de possessão, de fugas, de vícios, de complexos, de negação, de distúrbios. Nada. 
 
Então, leu sobre o controle e sobre a dominação. E teve fome de algemas, chicotes, correntes. Fome de poder. Esse pirulito grande, multicolorido.
 

Cinthia Kriemler

Retirado de Samizdat

publicado às 21:31

mafaldaparemomundo.jpg

 

"De todo o exposto resumindo e concluindo, estar caído/inanimado a porta de um hospital ou de um cemitério e a mesma coisa se o caso for serio. A única diferença e que num caso já chegou ao destino.

De tudo isto só me deixa uma grande náusea, o resto e a vida que temos sem precisar de muitos comentários."

 

Comentário de um anónimo ao post (auto link) sobre a senhora caída na porta do hospital Nossa Senhora do Rosário, no Barreiro

 

De repente apetecia-me ficar por aqui, mas não sou de deixar coisas por dizer.

 

Talvez seja defeito meu, mas para mim se alguém está a precisar de ajuda, eu pelo menos tento ajudar, se esse alguém está caído no chão, então o mais certo é que  precisa mesmo de ajuda e aí não interessam as regras ou as normas, o meu dever como pessoa e cidadão é ajudar.

 

Se um profissional de saúde é avisado de que alguém está caído no chão e precisa de assistência, independentemente das regras, das normas ou das condições, esse profissional deve ajudar, pelo menos para se inteirar da gravidade do assunto e poder tomar decisões. Se não o faz, se antes de pensar no bem estar da pessoa em questão coloca o seu bem estar ou as regras do hospital, para mim esse profissional não cumpriu o seu dever principal nem como profissional de saúde nem como cidadão.

 

Pelos vistos há noticias que dizem que afinal a senhora não estaria assim tão grave, mesmo que seja verdade, médicos e enfermeiros só saberiam isso depois de lá irem.. e ainda não vi noticia nenhuma que diga que eles lá foram, numa coisa são unânimes todas as noticias, eles não foram lá, porque tinha que ser o 112 e/ou o INEM a resolver o assunto.

 

De resto como disse antes, regras ou não regras, normas ou não normas, a vida das pessoas deve estar sempre em primeiro lugar e não me parece que alguém tirar uns minutos para se inteirar do que passava lá fora, fosse fazer assim tanta diferença no funcionamento do hospital, até porque nas urgências costumam trabalhar várias pessoas ao mesmo tempo, e não me consta que tenha acontecido nenhuma catástrofe nesse dia no Barreiro como para estarem todas a salvar vidas ao mesmo tempo e sem poderem parar uns minutos. Por outro lado, neste caso ou noutro qualquer, esses minutos podiam fazer a diferença entre a vida e a morte de alguém.

 

Não, não queremos que alguém estar caído/inanimado a porta de um hospital ou de um cemitério seja a mesma coisa.

 

É claro que a minha opinião vale tanto como outra qualquer e todas merecem respeito.

 

Jorge Soares

publicado às 22:35


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